16.200. Esse é o total de marmitas veganas doadas para pessoas em situação de vulnerabilidade pela Solidariedade Vegan – Marmitas sem crueldade Animal, até 2 de julho, dia do último balanço.

Há três meses, a empresária Vivi Torrico e o marido, o apresentador – e um dos ícones da música underground brasileira -, João Gordo, da banda Ratos do Porão, tiveram que fechar as portas do restaurante Central Panelaço que desde 2016 comandam no bairro do Bixiga em São Paulo, devido ao decreto de quarentena na cidade. Dois dias depois, Vivi teve que ir à loja e no caminho encontrou um amigo. O encontro ditou o rumo dos dias seguintes de sua quarentena.

“É um amigo que admiro muito: um senhor de cerca de 70 anos, carroceiro que trabalha pela região, que sempre é alegre, forte, cheio de vida, mas naquele dia estava com os olhos marejados, cabisbaixo, por causa de tudo que estava acontecendo. Em anos, nunca o vi daquele jeito. Cheguei em casa e tive uma crise de choro. Eu sou bem estável, sabe? Acho que a última vez que chorei assim foi quando o João estava na UTI”, conta Vivi, referindo-se à pneumonia grave que deixou o músico hospitalizado em UTI por dias, em 2019. Ela e o marido traçaram um plano para fazer a diferença nesse momento de crise. “Nós já entregávamos marmitas pelo Glicério, uma área bem vulnerável do centro, às quartas-feiras e sábados que é o dia de feijoada [vegana]. Assumimos o compromisso de fazer refeições todos os dias para doação”. A meta inicial era produzir 200 marmitas por dia. Hoje são mais de mil por semana. Conforme as doações chegam, seja pelo Catarse ou em insumos de empresas e ONGs, a produção aumenta. “Mas tem vezes, como na semana passada, que recebemos doações e produzimos 3 mil marmitas”.

Todo o cardápio foi planejado seguindo as recomendações de uma nutricionista parceira da Sociedade Vegetariana Brasileira (SBV). “Além de conseguir aproveitar ao máximo os insumos vegetais, a comida vegana é mais barata e mais fácil de conservar. Por exemplo, não usamos cebola e alho, e sim temperos em pó para evitar que as refeições estraguem rápido, em um dia quente”
João, que faz parte do grupo de risco para a Covid-19, fica nos bastidores. “Tenho diabetes, sou obeso, tive pneumonia ano passado, etc”, diz ele que apoia Vivi nas divulgações e contatos, enquanto a esposa e mais dois funcionários da Central preparam as marmitas veganas. Só a empresária acompanha parte das entregas.

A logística é toda planejada com o apoio dos carroceiros do projeto Pimp My Carroça que levam as quentinhas a diversos endereços, como o Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), que atende a população LGBTQIA+ em situação de extrema vulnerabilidade, e o Matilha Cultural. O Solidariedade Vegan também leva alimento a aldeias indígenas, comunidade do Canão, onde vivia o rapper Sabotage, na zona sul da cidade. “Duas vezes por semana, vamos a comunidades, uma vez no centro, a cada 15 dias levamos para o Sefras – Associação Franciscana de Solidariedade, e todos os dias pelas ruas da região do Glicério”, explica Vivi. Uma vez por semana, no endereço do Central Panelaço, pessoas em situação de rua e trabalhadores do sexo também podem buscar sua quentinha.

Mesmo com ações implementadas pelo governo de São Paulo, como a ampliação do programa Bom Prato que, desde 1º de abril, passou a funcionar aos finais de semana e a oferecer café da manhã e jantar gratuitos (para pessoas cadastradas na Prefeitura Municipal), além de almoços. O estado têm 59 restaurantes.

Apesar de ações implementadas pelo governo de São Paulo, como ampliação do programa Bom Prato, triagens com equipes de saúde e a abertura de 50 centros de acolhida em todo o estado, as pessoas em situação de rua ainda seguem as mais vulneráveis. “Aquelas que têm animais, por exemplo, não podem dormir com o bichinho no centros de acolhida. E o animal é seu melhor amigo, é quem dá carinho e amor sem julgá-lo. Eles dormem na rua junto aos seus cães, não vão deixá-los do lado de fora do abrigo. Nós conseguimos doações de rações para ajudar a alimentar os cachorros, e aos donos, levamos produtos de higiene básica e máscaras”, diz a empresária que já arrecadou 480 kg de ração.

O projeto Solideriedade Vegan entrega marmitas para pessoas em situação de vulnerabilidade - Divulgação - Divulgação

O projeto Solideriedade Vegan entrega marmitas para pessoas em situação de vulnerabilidade

Imagem: Divulgação

O casal que segue uma alimentação livre de crueldade animal há pelo menos 15 anos, e ofereciam a mesma dieta aos filhos. Mas quando eles experimentaram a coxinha de frango na lanchonete da escola, adoraram a iguaria tipicamente nacional. O jeito encontrado por Vivi foi se desdobrar para encontrar uma receita de coxinha de jaca que não deixasse em nada a desejar da versão tradicional. “A partir de dali, entendemos o valor afetivo da comida. Então, aplicamos o mesmo conceito no nosso cardápio, assim como nas marmitas distribuídas. Polenta com almôndegas, por exemplo, com ingredientes que entregam o sabor e aroma das versões com carne, são feitos com leite de coco, ‘queijo’ ralado vegetal, molho de tomate fresco. Todo mundo já comeu isso algum dia na vida. Nas ruas, ninguém nem sabe o que é veganismo, mas tão pouco notam a diferença de sabor. Já nas comunidades é mais comum perguntarem ‘o que é aquela coisa branca que está na feijoada'”, conta, rindo.

Eles já têm um plano para quando tudo isso passar: vão até as comunidades ensinar como cozinhar refeições veganas. Querem mostrar como, daquele pé de jaca, dá até para fazer coxinha que toda criança ama.

União pela música

Enquanto Vivi e uma rede de amigos ficam na linha de frente do Solidariedade, João põe seu talento de comunicador – e músico – em prática: ele teve a ideia de organizar lives semanais com parceiros da música para ajudar a espalhar o projeto, mas também para dar uma força aos artistas que perderam a renda dos shows devido à pandemia. O Clube do Risco vai ao ar todas terças e quintas-feira, às 18h, nas redes sociais do Panelaço, e reúne doações — 50% do valor arrecadado durante a live vai para o músico convidado e a outra metade, para o projeto de Vivi e João.

Com quase 40 anos de carreira no Ratos de Porão, João Gordo já viajou o mundo fazendo shows e tem amigos e fãs em todos os continentes “Chegam doações em yen, dólar, peso chileno, moeda de todo lugar!”, conta. Um fã norte americano fez várias doações por uma plataforma de transferência de moeda online no valor de USD 6,66 – e repete mensalmente a doação.

João Gordo é do grupo de risco para a Covid-19, mas quis acompanhar um dia de entregas do Solidariedade Vegan - Divulgação - Divulgação

João Gordo é do grupo de risco para a Covid-19, mas quis acompanhar um dia de entregas do Solidariedade Vegan

Imagem: Divulgação

João estava em isolamento social praticamente desde outubro do ano passado. “Quando finalmente me recuperei e ia voltar a fazer show, veio a pandemia”, conta. Depois de 90 dias em casa e com a saúde mais fortalecida, ele quis acompanhar uma das entregas, feita pelos freis do Franciscanos do Sefras. “Foi muito reconfortante. Tem gente de todo tipo, além das pessoas em situação de rua, têm os moleque, as trabalhadoras do sexo, os tiozinho que perambulam pelo centro, gente que trabalha de ambulante e falta grana pra almoçar”.

Depois de um tempo, muitos que passaram por ali começaram a reconhecê-lo. “Muitos diziam animados que já tinham ido em show meu. Até os freis, um monte de cara novinho!”, conta. Longe de querer publicidade, ele diz ter ficado feliz em trocar ideia com o pessoal e levar algum otimismo nesse momento “de sombras e falsidade que vivemos”.

Semanalmente o casal posta vídeos prestando contas do que foi gasto das arrecadações em dinheiros e sobre as doações que receberam de pessoas jurídicas.

Hambúrguer virou arroz e feijão

Há cerca de dois meses, uma cliente do restaurante vegano Animalchef quis comprar dez refeições, na maioria lanches, – ou “boxes”, como são chamadas por chegarem em caixinhas quadradas – para serem doadas a pessoas atingidas pela crise do coronavírus. “Mas percebemos que com o valor correspondente aos boxes, valia mais a pena montar uma marmita [arroz, feijão, legumes], com os mesmo produtos de qualidade que usamos, com um cardápio mais tradicional e de menor custo. Foi o pontapé inicial”, conta Carlos Dias, um dos sócios, que hoje sai semanalmente para distribuir quentinhas veganas. “Já foram mais de mil. Evitamos pontos mais conhecidos, que já são atendidos, e procuramos pessoas mais desamparadas.” Carlos distribui as marmitas em seu carro e a cada entrega procura um acompanhante diferente. Quer que vejam a realidade que está tão perto e pode passar despercebida.

Montagem de marmitas veganas doadas pela Animalchef, restaurante de São Paulo - Divulgação - Divulgação

Montagem de marmitas veganas doadas pela Animalchef, restaurante de São Paulo

Imagem: Divulgação

O Animalchef começou em 2016 como hamburgueria vegana em feiras e eventos, e hoje vende, em seus dois endereços, refeições, porções, pizzas e sobremesas. Defendem em seu manifesto o que deve ser uma empresa do século 21: empenhada em solucionar problemas sociais, reduzir o plástico, utilizar produtos de qualidade e não se aliar a empresas que são parte do problema. “Toda empresa tem um dever social, não dá para pensar apenas em fazer lucro, ganhar dinheiro”, diz o chef.

Para as primeiras produções, de cem marmitas por semana, o restaurante investiu recursos próprios, mas logo a história se espalhou e as doações começaram a chegar. Criaram, em uma plataforma de delivery, um produto chamado “Marmita Solidária”, no valor de R$ 4,00. Quem compra essa marmita não recebe nada em casa, mas colabora com o projeto, que graças ao aplicativo já se sustenta sozinho. Um restaurante vegano parceiro, o Pop Vegan, localizado na região da rua Augusta, ajuda com as embalagens e doações de cobertores novos.

A produção e entrega das marmitas envolveu ainda outro parceiro como um projeto-piloto que vem firmando algumas ações: o Ativismo no Prato.

Rede de compartilhamento e sustentabilidade

Nascido em caráter de urgência em um maio atípico no qual as mortes no Brasil causadas pelo coronavírus avançaram exponencialmente, o projeto Ativismo no Prato surgiu da inquietação que três mulheres dividiam durante o isolamento: “o caos ainda deve durar um bom tempo, e atingir cada vez mais pessoas”, diz Christiane do Nascimento, uma das fundadoras do projeto.

“Pensando nisso, por acreditarmos que a maneira que nos relacionamos com o alimento pode ser transformadora, resolvemos focar no ativismo vegano. Queríamos ajudar, e então rapidamente desenvolvemos o piloto, para já fazer a ideia acontecer. Deu certo e agora vamos crescer”, comemora.

A ideia é simples e efetiva: buscar restaurantes veganos e utilizar suas cozinhas para a produção de marmitas para distribuir em uma ocupação, na zona norte de São Paulo, onde vivem muitos imigrantes e um amigo de Christiane.

Como consequência da criação do Ativismo no Prato, surgiu a BeeJuntos, uma plataforma pensada para arrecadar doações para projetos de impacto social e de sustentabilidade.

Para esse piloto, conseguiram de um único doador o valor correspondente a 400 marmitas. Entraram em contato com o Animalchef, restaurante vegano que já frequentavam, e propuseram a parceria. Em cerca de um mês, a operação estava estruturada e teve início a distribuição semanal das quentinhas.

As criadoras do projeto também querem viabilizar que a entrega de quentinhas seja feita em carro elétrico o mais breve possível. “Queremos construir uma cadeia sustentável de causas e seguimos em busca de novos parceiros”, conta Christiane, para quem o veganismo é uma maneira de conscientizar as pessoas, pois comer com saúde tem impacto ambiental direto. “Precisamos repensar nosso consumo; é o momento dos pequenos se unirem e criarem uma cadeia de compartilhamento e sustentabilidade”, ela defende.

“Nós acreditamos no despertar coletivo, estamos vendo muitos projetos serem tirados do papel, as pessoas se unindo para fazer as coisas acontecerem, entendendo a importância da economia local, do alimento sem agrotóxico”, completa Nicole Romboli, também criadora do Ativismo e da BeeJuntos junto com a terceira amiga, Juliana Custódio. “Não dá mais para deixar para o futuro, não temos mais tempo. O futuro já está acontecendo.”

Como ajudar?

Se você quer fortalecer as ações e projetos retratados nessa reportagem, é possível fazer doações e ajudar para que mais refeções cheguem a quem precisa.

Solidariedade Vegan

O projeto faz atualizações frequentes em seu perfil no Instagram, @SolidariedadeVegan, e as doações podem ser feitas via depósito bancário (Banco Itaú; João F. Benedan, CPF: 101.471.468-01; agência 3757 e conta 04754-7, com a identificação Solidariedade Vegan) ou via financiamento coletivo.

Animalchef

A doação é feita via apps de entrega. Ao clicar no menu do restaurante, é necessário selecionar a opção Marmita Solidária.

Ativismo no Prato

As doações são feitas por meio do aplicativo BeeJuntos, criado a partir da ideia do projeto. O app reúne pessoas interessadas em fazer doações a iniciativas que precisam de ajuda.



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