Este texto é a primeira parte de uma série de reportagens sobre o lítio e a eletrificação dos transportes; saiba mais no final da página.
- Os carros elétricos devem substituir os veículos movidos a combustíveis fósseis em um futuro próximo
- No Brasil, os elétricos representam cerca de 1% da frota total de veículos
- O lítio é um metal que possui propriedades físicas que o tornam essencial para as atuais baterias de veículos
Os carros elétricos vieram para ficar. Apesar de ser uma das principais apostas para um futuro em que a humanidade possa gerar menos poluição, os veículos movidos a eletricidade também têm seu custo ambiental: as demandas crescentes por minérios e metais como o lítio, essencial para as atuais baterias que movem esses carros.
As cidades tendem a ficar cada vez mais dependentes da energia elétrica, o que deve fazer aumentar a demanda por lítio para a fabricação de baterias (ilustração: TecMundo)
O lítio já está presente nas baterias de telefones e computadores, mas o aumento nas vendas dos carros elétricos, que usam baterias maiores, deve fazer com que a demanda pelo lítio aumente mais de 40 vezes até o ano de 2040, segundo um relatório publicado em maio de 2021 pela IEA (Agência Internacional de Energia).
“A demanda [pelo lítio] vai crescer muito num futuro próximo; não há dúvidas de que isso vai acontecer. É muito provável que sejam abertas novas minas para dar conta do aumento na produção do metal”, diz o engenheiro de minas Luis Enrique Sánchez, professor na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
O cenário do mercado de automóveis no Reino Unido no ano de 2020 pode indicar o futuro em países mais pobres. Naquele ano, os elétricos puros ou elétricos híbridos — veículos que funcionam com eletricidade e combustíveis fósseis — representaram mais de 10% dos novos registros de carros no país, segundo dados da Sociedade de Fabricantes e Comerciantes de Motores do Reino Unido (SMMT) publicados no início de 2021.
Se atualmente veículos elétricos (híbridos ou totalmente elétricos) representam 1 a cada 10 novos registros de carros no Reino Unido, em 2019, a cada 30 carros vendidos apenas 1 era elétrico. Em 2020, a demanda por carros totalmente elétricos (battery electric vehicles, ou BEVs), cresceu quase 186%, de acordo com a SMMT.
Carros elétricos em estação de recarga (crédito: Shutterstock)
Os carros elétricos se beneficiam também das pressões que governos fazem para aumentar as vendas na busca por redução nos gases poluentes emitidos pela queima de combustíveis fósseis. No fim de 2020, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, divulgou que, ali, o fim das vendas de veículos movidos à derivados do petróleo, como gasolina e diesel, deve acontecer no ano de 2030. Outros países determinaram ações semelhantes.
A União Europeia propôs que o fim das vendas de novos carros movidos à gasolina e diesel aconteça até o ano de 2035. A meta do presidente norte-americano Joe Biden foi menos audaciosa, mas ainda assim deve ter um impacto gigantesco no mercado de automóveis dos Estados Unidos: o objetivo é que os carros elétricos sejam 50% das vendas totais de veículos até o ano de 2030.
Qual o cenário do carro elétrico no Brasil?
No Brasil, os elétricos representam cerca de 1% da frota total de veículos. Mas esse quadro pode mudar nos próximos anos. Dados da ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico) mostram que foram vendidos mais de 27 mil carros elétricos no país entre os meses de janeiro e outubro de 2021 — 74% a mais do que as vendas no mesmo período no ano anterior.
“Nos últimos dez anos o preço das baterias caiu 90%; a partir de 2025 vai ficar ainda mais barato usar um carro elétrico”, (Adalberto Maluf, diretor de Marketing e Sustentabilidade de BYD no Brasil e presidente da ABVE – Associação Brasileira do Veículo Elétrico)
Os modelos ainda têm preços elevados por aqui, uma das maiores barreiras para a ampliação das vendas — o 100% elétrico mais barato, o E-JS1 da JAC Motors, custa a partir de R$164.900, segundo a página da empresa em janeiro de 2021. O carro tem autonomia de 300 km, diz a JAC.
De acordo com Adalberto Maluf, diretor de Marketing e Sustentabilidade de BYD no Brasil, empresa chinesa que é uma das líderes no setor de veículos elétricos e painéis solares, os preços tendem a cair nos próximos anos.
Segundo Maluf, que também é atual presidente da ABVE, hoje a bateria de um carro elétrico é responsável por aproximadamente 40% do custo total do produto. “Mas nos últimos dez anos o preço das baterias caiu 90%; a partir de 2025 vai ficar ainda mais barato usar um carro elétrico”, afirma.
A BYD tem uma unidade em Manaus que faz a montagem de baterias de lítio para ônibus elétricos. Segundo Maluf, em 2022 os carros elétricos mais leves da gigante chinesa devem começar a ser vendidos no Brasil.
Por que o lítio?
O lítio é o metal mais leve da tabela periódica, e foi descoberto com uma ajudinha de um brasileiro ilustre: José Bonifácio de Andrada e Silva.
Mais conhecido por sua atuação política, Andrada e Silva foi também um naturalista, e foi graças a minerais encontrados pela primeira vez por ele (petalita e espodumênio), durante uma viagem científica pela Europa realizada no fim do século 18, que, em 1818, o químico sueco Johan August Arfwedson descobriu a lítio, contido em tais minerais.
“O lítio tem quase metade da densidade da água e um alto calor específico, o que o torna útil para a produção de vidros muito resistentes ao calor, por exemplo”, diz a geóloga Ioná Cunha, chefe da Divisão de Projetos Especiais e Minerais Estratégicos do Serviço Geológico Brasil (SGB/CPRM).
As aplicações do metal são várias; além de ser usado para construir vidros mais fortes, ele é usado para fazer lubrificantes, graxas e remédios, mas é nas baterias que o lítio tem o seu potencial mais explorado — estima-se que entre 70% e 80% de todo o lítio usado pela indústria no mundo vai para as baterias.
“A principal característica é o alto potencial eletroquímico, o maior de todos os metais. Unindo esse atributo à baixa densidade, o lítio é capaz de armazenar muita energia em volumes pequenos. Em um curto prazo ele não tem um substituto”, afirma o engenheiro químico Paulo Braga, pesquisador e vice-diretor do Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
O lítio nunca é encontrado de forma pura na natureza, explica Cunha. Ele é obtido de um depósito mineral, o tipo que existe no Brasil e na Austrália (atualmente o país que mais produz o metal no mundo), ou salmoura, mais comum em países como Chile e Bolívia.
Depois de extraído da reserva, o metal é processado para se tornar carbonato de lítio ou hidróxido de lítio, as principais formas em que ele é usado na indústria, diz a geóloga.
Planta de processamento de lítio localizada no oeste da Austrália (crédito: Shutterstock)
Desde o surgimento dos telefones celulares portáteis, na década de 1990, as baterias caminham para se tornar onipresentes. Hoje, é quase impossível imaginar a vida sem elas. Basta olhar ao redor para perceber que aparelhos grandes e pequenos dependem de alguma reserva móvel de eletricidade para funcionar longe da tomada.
Essa revolução dos equipamentos portáteis está intimamente ligada ao desenvolvimento das baterias de lítio, capazes de guardar mais energia do que tecnologias anteriores e de serem recarregadas mais rapidamente. As baterias de lítio surgiram para substituir os reservatórios antigos de níquel cádmio e chumbo-ácido, que tinham capacidades menores.
Há vários tipos de baterias de lítio que usam tecnologias diferentes para funcionar. “Mas em todas elas o lítio é essencial, é através dele que vão acontecer as reações para armazenar a energia”, diz Maria de Fátima Rosolem, química e pesquisadora no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD).
Crédito: TecMundo
O lítio pode ser usado em uma ou mais partes das baterias e representa cerca de 3% do peso total da peça, de acordo com Rosolem. No caso dos veículos, a pesquisadora explica que as baterias podem conter milhares de pequenas células, onde as reações ocorrem, ligadas em série ou paralelo.
Para chegar ao formato atual, foi necessário contornar problemas de segurança para evitar o risco de explosões. Rosolem conta que a solução veio com um controle eletrônico que tornou a bateria mais estável ao fazê-la trabalhar na faixa segura de tensão e temperatura; o controle também é capaz de equalizar o desbalanço de energia entre as células, dando maior durabilidade à peça.
O novo capítulo na história da relação entre o lítio e a humanidade já começou a ser escrito. Dominada a tecnologia que fez os equipamentos eletrônicos se tornarem parte essencial da vida contemporânea, agora é hora de olhar para a frente e enfrentar a questão da demanda pelo metal.
“Hoje o lítio já é considerado um metal crítico por sua importância na aplicação em alta tecnologia. Mas precisamos de mais pesquisa e desenvolvimento para melhorar nossa capacidade de suprir essa demanda que só vai crescer”, conclui Ioná Cunha, do CPRM.
Sabemos que há lítio no Brasil, e algumas empresas nacionais e estrangeiras intensificaram suas operações no território nacional de olho na crescente demanda; mas ainda há dúvidas sobre o potencial do país para se tornar relevante nesse mercado.
Este trabalho foi possível graças a uma bolsa para a produção de trabalhos jornalísticos em temas de ciência, a qual foi concedida pela Fundación Gabo e pelo Instituto Serrapilheira, com o apoio do Escritório Regional de Ciências da UNESCO para a América Latina e Caribe.
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