Antes do casamento perfeito entre o chassi de um Fórmula E e uma carroceria impregnada de história, muitos investidores e engenheiros sonhadores tentaram e falharam na intenção de ressuscitar a Hispano Suiza.
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Mas, finalmente, com o Carmen, uma das marcas mais luxuosas da primeira metade do século passado, voltou à vida. O nome do superesportivo elétrico é uma homenagem à mãe do presidente da empresa espanhola, Miguel Suqué Mateu, e o modelo pode ser encomendado em duas opções: Carmen, com 1.019 cv, ou Carmen Boulogne, de 1.114 cv.
O torque é de 117,3 kgfm. Para isso, o modelo utiliza dois motores elétricos em cada roda traseira. Quer mais números? A empresa sediada em Barcelona anuncia 0 a 100 km/h em menos de 2,6 segundos e máxima de 290 km/h. Custa a partir de 1,65 milhão de euros, ou mais de R$ 10 milhões.
Desde a estreia do primeiro conceito, no Salão de Genebra de 2019, o estilo divide opiniões. Mas a marca catalã quis fazer uma homenagem ao clássico Hispano Suiza H6C Dubonnet Xenia. Apresentado no Salão de Paris de 1932, ele combinava traços de automóvel e avião.
O carro, tido como o mais rápido de sua era (atingia 160 km/h), foi feito sob encomenda para o piloto André Dubonnet, e tinha como destaque as rodas traseiras cobertas.
Assim, o conceito de 2019 conservou nítidas influências desse modelo histórico, mas acrescido das portas estilo asa de gaivota, além de uma seção dianteira que lembra traços dos Bugatti atuais.
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A carroceria é de fibra de carbono, material presente também no monocoque (que pesa apenas 195 kg), no subchassi traseiro, na estrutura dos bancos e nos painéis das portas, com o objetivo de assegurar a máxima resistência e leveza.
O Carmen me aguardava em um dos boxes da pista de Montmeló, na Catalunha, em sua versão mais brava, Boulogne, e sem a cobertura nas rodas traseiras: “O cliente é que vai definir se quer as rodas tapadas, mas praticamente não há diferença em termos aerodinâmicos”, garante o diretor técnico do projeto, o brasileiro Fabiano Ferreira.
Um toque de botão e as portas sobem eletricamente para me acomodar ao volante com seção inferior plana, feito de fibra de carbono, Alcantara e alumínio tingido de rosa dourado, combinando com todo o interior.
Há borboletas para escolher entre os seis níveis de recuperação de energia. A tela da central tem posição vertical e, tal como a instrumentação digital com grafismo retrô, foi desenvolvida pela própria HS.
Fórmula E com carenagem
Em diversos aspectos, este Hispano Suiza é uma espécie de Fórmula E com carroceria e lugar para duas pessoas. “É uma boa forma de definir o Carmen em poucas palavras”, atesta o ex-piloto de F1 Luis Perez-Sala, atual piloto de testes e embaixador da marca, enquanto me ajuda a sentar no cockpit.
Há três modos de dirigir: Eco (quando são liberados 340 cv e 61,2 kgfm), Comfort (476 cv/81,6 kgfm) e Sport (680 cv/107 kgfm). Este último permite ativar a função Launch, para se atingir um impulso elétrico até os 1.114 cv e 117,3 kgfm.
A suspensão, de duplos triângulos sobrepostos na frente e atrás, tem forte inspiração na dos carros de Fórmula E. Não há amortecimento variável e as regulagens exigem um mecânico para trabalhar sob a carroceria: são quatro para altas velocidades e quatro para baixas.
O modelo pesa somente 1.630 kg, o que resulta em relação peso/potência de 1,46 kg/cv. Os freios são de carbono-cerâmica.
Após as explanações, Perez-Sala partiu com um Tesla na minha frente. Logo na primeira sequência de curvas, noto que o primeiro terço do curso do pedal de freio não faz mais do que “cócegas” nos discos.
A partir da metade do curso, começo a sentir força de frenagem, porém com o pedal mais leve do que o de muitos carros de corrida. Os técnicos dizem que ainda irão aumentar a pressão inicial.
A direção é um pouco leve e mesmo no modo Sport não notei o aumento de peso que esperava, algo que mais tarde me foi explicado por Fabiano Ferreira: “Neste carro ainda não temos o efeito de variação na resposta da direção quando se mudam os modos de dirigir, mas nos veículos finais teremos”.
Hora de rodar (literalmente)
No test-drive, o piloto Perez-Sala seguia à frente ao volante de um Tesla me mostrando o traçado.
Como não conseguia que o seu carro voasse para que a minha volta mais rápida com o Carmen pudesse ser “hot”, meu copiloto, Pablo Suarez, sugeriu que eu deixasse distância em algumas retas para poder experimentar o potencial de aceleração, e que provocasse um pouco o Boulogne em curva para avaliar o comportamento.
Pois foi assim que, numa curva mais fechada do miolo do circuito, decidi dar mais gás (modo de dizer, evidentemente, já que estamos em um carro elétrico) e volante, e o resultado foi tão imediato quanto surpreendente: uma espetacular rodada de 360 graus!
Depois de algumas preces e do agradecimento à proteção da sra. Carmen, quando, envergonhado, me preparava para pedir desculpas a Perez-Sala pelo rádio, ele se antecipa e se desculpa por não ter me avisado que o controle de estabilidade estava desligado. No fim, todos ficamos bem, incluindo o Carmen e o copiloto.
Uma curiosidade é que as baterias do Carmen não aceitam mais que 80% de carga. A justificativa, segundo Fabiano Ferreira, é que este não é um automóvel para viagens muito longas, e nem será usado todos os dias. “Para passeios eventuais, essa potência de carga é mais do que suficiente.”
A bateria de íons de lítio tem capacidade de 80 kWh, que permite autonomia homologada de até 400 km. Em carregador rápido de 100 kW (de Corrente Contínua, CC), precisa de apenas 30 minutos para ir de 30 a 80% de carga. Com carregamento em Corrente Alternada (CA) de 22 kW, são seis horas para fazer o mesmo.
A primeira unidade de uma série limitadíssima de 24 unidades foi destinada a um multimilionário colecionador de Miami, nos EUA.
Comenta-se em voz baixa na sede da Hispano Suiza que há um português prestes a encomendar o seu carro, e ninguém negou quando perguntei se era um que tinha feito fortuna jogando futebol. Se confirmado, certamente o Carmen ganhará lugar de destaque na garagem de Cristiano Ronaldo.
A montagem artesanal de cada carro só começa quando o pedido é formalizado. A fábrica informa que ainda há unidades à venda.
Veredicto Quatro Rodas
Hipercarro com tiragem limitada, para garagens milionárias, o Carmen faz jus à história da marca, adaptado aos novos tempos.
Ficha Técnica
Preço: 1.650.000 euros
Motor: 2 motores elétricos, traseiros, 1.019/1.114 cv, 117,3 kgfm
Bateria: íons de lítio, 80 kWh
Câmbio: 1 marcha, tração traseira
Direção: elétrica
Suspensão: duplo A nos dois eixos
Freios: disco carbo-cerâmico ventilado
Pneus: 265/30 R19 (diant.), 305/30 R20 (tras.)
Dimensões: comprimento, 473,2 cm; largura, 204 cm; altura, 124,2 cm; entre-eixos, 280 cm; peso, 1.630 kg
Desempenho: 0 a 100 km/h, <2,6 s; veloc. máx., de 290 km/h; consumo misto 24 kWh/100 km, autonomia 400 km, recarga (30 a 80%), 6h (22 kW)/ 30 min (110 kW)
Tempero brasileiro
Entrevista com Fabiano Ferreira, diretor técnico do projeto Carmen
Com 19 anos, o carioca Fabiano Ferreira foi para Bolonha, na Itália, para estudar engenharia mecânica. Mas, após a graduação na cidade conhecida como a “terra dos motores” (a combustão), quis o destino que ele fizesse a transição para a propulsão elétrica. Aqui, ele fala um pouco sobre sua experiência:
Foi difícil passar dos térmicos aos motores a gasolina para os elétricos?
Não, porque eu sempre estive muito ligado à área da unidade de controle do propulsor, muito semelhante nos dois casos. Há uma fonte de potência, e temos que administrar o rendimento pedido pelo piloto, tanto em um caso como no outro.
Por que optaram por ter dois motores elétricos em cada roda traseira?
Foi a opção inicial porque queríamos um carro de comportamento muito esportivo, de tração traseira. Mas a arquitetura do chassi já está preparada para colocar dois motores elétricos no eixo dianteiro, um por roda. E o software de controle da motorização também foi desenvolvido para gerir até seis motores, dois na frente e quatro atrás. Há clientes que estão pedindo isso e é uma forte possibilidade de customização já nesta série de 24 Carmen que serão produzidos. Nesse caso, estamos falando de um rendimento de mais de 1.500 cv e, claro, tração nas quatro rodas.
Sonho secular
A Hispano Suiza foi uma marca que, entre os anos 1920 e 1930, rivalizava com Mercedes-Benz, Bugatti e Rolls-Royce, entre outros fabricantes especializados em automóveis de altíssimo luxo.
O nome Hispano Suiza veio da nacionalidade de seus fundadores: o espanhol Damián Mateu e o suíço Marc Birkigt. Fundada em 1904, a Hispano Suiza fabricava automóveis e motores de aviões e, assim como outras empresas, enfrentou sérias dificuldades no período pós-Segunda Guerra Mundial.
A divisão de automóveis, com sede na Espanha, foi vendida em 1946 e a de aviões, na França, hoje pertence a um grupo que tem a família Mateu como sócia.
Os herdeiros de Damián Mateu, já na quarta geração, atualmente são donos de um grupo de empresas chamado Peralada, com interesses em diversas áreas, mas sobretudo nos ramos de gastronomia (restaurantes) e entretenimento (hotéis, cassinos).
Mas os Mateu nunca se esqueceram de sua vocação e por pelo menos duas vezes, antes da atual, tentaram relançar a marca. A primeira foi em 2002, com um protótipo equipado com motor V8 BMW e a segunda, em 2010, usava a base de um Audi R8 V10.
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