Em 1975, o Brasil vivia sob a Ditadura Militar, quando o governo do general Ernesto Geisel lançou o Programa Nacional do Álcool – Pró-Álcool. O momento não podia ser mais oportuno. Dois anos antes, em 1973, o mundo passara pela primeira grande crise do petróleo, com o choque de oferta dos grandes produtores do Oriente Médio que elevou o preço do barril a níveis jamais vistos, causando abalos na economia global. O Brasil queria se precaver de um eventual estrago ainda maior, que poderia vir no futuro.

Assim nasceu o Pró-Álcool, que pretendia reduzir a frota nacional de carros movidos a gasolina, abrindo espaço para veículos a álcool, o que reduziria as importações de petróleo, commodity que já pesava substancialmente na balança comercial brasileira. Oficialmente lançado em 1975, o programa só começaria a produzir efeitos reais quatro anos depois, a partir de setembro de 1979, quando o Ministério da Indústria e Comércio e a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) assinaram o protocolo que viabilizou a produção de veículos a álcool no País.

À época, a Anfavea era presidida pelo empresário paulista Mario Garnero (leia entrevista ao final da reportagem), que ficou no cargo de 1974 a 1981 e assinou o documento com o então vice-presidente da República, Aureliano Chaves. Passados 40 anos, o álcool se tornou combustível fundamental na economia nacional, na sustentabilidade do setor e ganha cada vez mais força no mundo. Só com o que o País deixou de gastar na importação de petróleo, foram economizados mais de US$ 15 bilhões. Além disso, o aumento da frota de carros movidos a etanol, menos poluente do que a gasolina, significou uma redução de cerca de 40% na poluição do ar nas grandes cidades brasileiras. Para falar sobre essa longa e exitosa trajetória do Pro-Álcool, Mario Garnero se prepara para lançar o livro “Carro a Álcool – O salto para o futuro”. Na obra, ele narra os bastidores do nascimento do programa, aponta o etanol brasileiro como exemplo para o mundo e trata de assuntos como os desafios iniciais, o aumento da frota global de carros a álcool e o futuro do combustível ambientalmente mais sustentável que existe.

MILAGRE ECONÔMICO Garnero relembra o ano de 1975, quando o período do chamado “milagre econômico”, com o Brasil registrando elevadas taxas de crescimento do PIB, entrava em seus estertores. “Era preciso tomar medidas duras para estancar o sangramento provocado pela súbita elevação do preço do barril de petróleo no mercado internacional”, destaca o autor. O Brasil registrava então um consumo diário de 700 mil barris de petróleo, dos quais 500 mil eram importados (mais de 70% do total). Foi quando o uso do álcool como combustível passou a ser apontado por cientistas e especialistas como uma alternativa econômica. Havia, porém, um problema.

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Política pública: segundo Evandro Gussi, presidente da Unica, o etanol faz parte das diretrizes energéticas de 60 países (Crédito:Divulgação)

À época, o preço do açúcar no mercado internacional estava altíssimo, ultrapassando US$ 1 mil por tonelada – para se ter uma ideia, hoje ele está cotado em torno de US$ 340. Com altas margens na venda de açúcar, os usineiros não tinham motivação para investir na produção de álcool, dificultando os planos do governo. A situação começou a mudar no dia 9 de outubro daquele ano, quando o presidente Ernesto Geisel, num discurso carregado de emoção, declarou que o Brasil precisava de um caminho para escapar dos altos custos do petróleo importado. E anunciou o lançamento do Programa Nacional do Álcool.

Antes de se consolidar, o Pró-Álcool enfrentaria resistências. Os benefícios prometidos pelo governo com o projeto dos carros movidos a álcool foram duramente questionados por diversos setores da sociedade. Alguns críticos alegavam que o País iria se transformar num enorme canavial, com a monocultura da cana ocupando terras férteis que poderiam ser utilizadas para a produção de alimentos. As previsões pessimistas, como se sabe, não se concretizaram. O Brasil expandiu suas fronteiras agrícolas para o centro-oeste. “A produção de cana-de-açúcar jamais interferiu ou prejudicou a produção de grãos”, destaca Garnero.

Em julho de 1979, quando a Fiat lançou o primeiro carro a álcool do País – o modelo 147 –, o Brasil produzia 6 milhões de toneladas de grãos e 2 milhões de metros cúbicos de álcool. Em 2018, esses números foram, respectivamente, de 230 milhões de toneladas de grãos e 28 milhões de metros cúbicos de álcool. A demanda por um combustível não derivado do petróleo levou a agricultura brasileira a avançar, fazendo surgir usinas e destilarias modernas e bem equipadas, principalmente no Nordeste e em São Paulo, muitas delas capazes de gerar a própria energia, com a queima do bagaço de cana. “Hoje, cerca de 15% da energia consumida no Brasil provêm da biomassa de cana-de-açúcar, com emissões neutralizadas ou até captura de carbono”, destaca o advogado e ex-deputado federal Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Ele ressalta, ainda, que atualmente o etanol contribui com a maior parcela de remuneração da indústria sucroenergética. “Sobretudo quando o preço do açúcar está deprimido, principalmente por causa de táticas anticoncorrenciais, especialmente por parte da Índia”.

MEIO AMBIENTE “O Pró-Álcool salvou o setor usineiro nacional. Sem o programa, não teríamos nem metade das usinas que temos hoje no País”, diz o produtor e usineiro pernambucano José Pessoa de Queiroz Bisneto, à frente de uma dos dez maiores grupos do setor de etanol no País com produção anual de 80 milhões de litros. Graças ao Pró-Álcool, a produção de biocombustíveis evoluiu tanto no Brasil que hoje é exemplo mundial. Inclusive do ponto de vista da sustentabilidade ambiental. O Governo Federal decidiu regulamentar, em 2009, o cultivo da cana-de-açúcar, excluindo a possibilidade de expansão em áreas de preservação ambiental, como a Amazônia e o Pantanal. “No estado de São Paulo, que responde por 50% da produção de açúcar e álcool no País, a legislação é ainda mais rigorosa, estabelecendo normas para que as destilarias sejam autossustentáveis em termos da energia elétrica”, afirma Garnero. Evandro Gussi reforça: “O etanol é fundamental para a redução de emissão de gases do efeito estufa e da poluição do ar nas grandes cidades”, diz o presidente da Unica.

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Desastre: para José Pessoa de Queiroz Bisneto, o governo Dilma causou a falência de mais de 100 usinas, 25% do total do País (Crédito:Divulgação)

“Hoje, cerca de 60 países já têm o etanol como política pública”. Agora, começam a entrar em cena os carros elétricos e híbridos, numa nova fase para o setor. E nesse futuro, o etanol parece ter lugar garantido.

Ainda segundo Gussi, é preciso analisar as emissões de poluentes de carros elétricos e de veículos movidos a álcool com equidade. “Quando falamos de emissões do etanol, falamos de todo o processo no ciclo do combustível, do cultivo da cana à combustão no veículo”, afirma. Ele explica que, no caso dos carros elétricos e híbridos, é preciso observar o quanto de emissões há na confecção da bateria e como a energia que vai abastecer esses veículos é produzida. “Em alguns casos, o carro elétrico pode gerar até mais gases poluentes do que um movido a gasolina”. O melhor dos mundos, segundo o presidente da Unica, é o veículo híbrido que combina etanol e eletricidade. Foi exatamente o que a Toyota fez no novo Corolla, o primeiro carro híbrido flex do mundo, que acaba de ser apresentado pela montadora japonesa. O modelo é movido por um motor elétrico, mas a energia que consume é gerada por um motor flex, que pode usar etanol e gasolina. “É o carro mais limpo do mundo, com menores índices de emissões”, afirma Gussi.

As vantagens econômicas e ambientais do etanol são evidentes, mas sua competitividade depende de políticas públicas. “Se a corrupção na Petrobras causou enormes prejuízos a todo o segmento, a incompetência política no setor energético gerou danos muito piores”, afirma José Pessoa.

“Para segurar os preços dos combustíveis, o governo Dilma Rousseff importava gasolina cara e revendia mais barata. Essa conta acabou estourando nas costas do produtor”. Segundo ele, cerca de 100 usinas fecharam as portas, o que representa 25% do total em atividade no momento em que Dilma assumiu a Presidência. Ainda que o setor tenha balançado, o abastecimento nos postos se manteve constante e sem os racionamentos do passado. Nada disso seria possível sem os pioneiros brasileiros responsáveis pela criação do Pró-Álcool, há 40 anos.

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ENTREVISTA

“O etanol ainda é o futuro”

Mario Garnero, empresário, ex-presidente da Anfavea

Por Celso Masson

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Eduardo Martino / documentography

DINHEIRO – Bem antes da implantação do Pró-Álcool, já havia experiências de veículos automotores movidos a biocombustíveis. Por que eles só se viabilizaram no final da década de 1970?
Mario Garnero – Os primeiros carros da Ford eram movidos a álcool. Só depois é que a gasolina se tornou mais competitiva em termos de preço e se tornou a principal matriz de combustível para os automóveis. Em 1924, uma usina em Alagoas criou uma pioneira frota de carros a álcool. Apesar dessas iniciativas anteriores, foi só nos anos 70 que o tema se impôs. A crise cambial brasileira forçou o racionamento dos combustíveis. A pedido do Mário Henrique Simonsen, que era ministro do Planejamento, reuni os presidentes da indústria automobilística e do setor sucroalcooleiro para resolvermos juntos o problema. Em setembro de 1979, apresentamos a proposta de produzir 1 milhão de carros a álcool já no ano seguinte. O plano foi acusado de ser antinacional, por ferir os interesses da Petrobrás. Chegamos a um ponto de equilíbrio ao oferecer 250 mil carros a álcool por ano.

A adesão dos brasileiros ao carro a álcool foi imediata naquele momento. Mas arrefeceu com o tempo. Por quê?
Por erros da política energética brasileira. Criou-se do dia para a noite uma estrutura nacional de produção de automóveis a álcool e distribuição nos postos. Trocamos as bombas que então ofereciam gasolina azul (melhor e mais cara) por bombas que forneciam álcool. Isso só foi possível pela determinação do presidente João Batista Figueiredo. Só que a oferta de álcool depende de uma variável que é o preço do açúcar no mercado internacional. Quando a cotação do açúcar sobre, as usinas deixam de produzir etanol. E o governo, dentro dessa linha de proteger o petróleo, deixou de incentivar a produção de etanol como deveria. Quando os preços do petróleo caíram, já no governo Sarney, o Brasil praticamente abandonou o etanol. Se tivéssemos garantido aos usineiros uma demanda que superasse a dependência do açúcar, isso não teria ocorrido. O consumo só voltou a crescer com o advento do carro flex, porque aí o consumidor decide que combustível é mais vantajoso para o seu bolso. Hoje a relação de preço é de 63%.

Como os Estados Unidos entraram na corrida do etanol?
Nos Estados Unidos, o etanol de milho, que tem um rendimento energético bem menor que o da cana-de-açúcar, também foi incentivado nessa mesma época como alternativa para os automóveis. Lá havia uma crise extraordinária dos produtores de milho, que estavam com estoques altíssimos. O governo encontrou no etanol uma solução para salvar os agricultores. Quem montou a primeira usina de etanol de milho no Kentucky fomos nós, brasileiros.

Qual o futuro do etanol diante da ascensão dos híbridos e elétricos?
O etanol está servindo até à aviação. Mas a indústria automotiva depende de duas condições: fornecimento constante e de qualidade. Isso nós temos no Brasil. Ao lançar o automóvel híbrido flex, como a Toyota acaba de fazer, acrescentamos uma nova página nessa história. A relação de preço vai continuar garantindo o futuro do setor. O carro elétrico é a grande novidade. Mas a geração de energia elétrica em muitos países depende de materiais fósseis, o que é um passo para trás em termos de sustentabilidade. Na China que alardeia tanto o carro elétrico, a produção de eletricidade depende 85% de carvão. Vamos chegar a um ponto em que a poluição gerada pela cadeia que impulsiona o carro elétrico será revista. O etanol ainda é o combustível do futuro.

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