Esta semana não vos vou falar de viagens mas daquilo que utilizamos para chegar aos nossos locais de sonho, ou seja de automóveis. Durante duas décadas os motores a gasóleo foram dominantes na Europa. Proporcionavam baixos consumos e carros agradáveis de conduzir. Agora são apontados como a fonte de todos os males mas eliminá-los liminarmente pode fazer mais mal que bem. Vejamos porquê.
O escândalo dieselgate, em 2015, esteve para a indústria automóvel como o terramoto de 1755 para a cidade de Lisboa: da arquitectura até aí prevalecente não ficou pedra sobre pedra. Uma vez descoberto que o grupo Volkswagen, então o maior construtor mundial, tinha montado um esquema informático para adulterar a leitura das emissões gasosas, nomeadamente no cobiçado mercado norte-americano, as normas anti-poluição foram revistas e a própria VW teve que empreender uma travessia do deserto que passou pela limpeza da imagem (incluindo a mudança de logótipo) e pela conversão ao credo verde, lançando na edição deste ano do Salão Automóvel de Frankfurt o ID3, primeiro modelo 100% eléctrico da marca projectado de raiz.
Normas ambientais mais severas
Como não há sismo sem réplicas, a União Europeia aprovou normas antipoluição muito mais severas (nomeadamente no que respeita aos gases com influência no efeito de estufa, caso do CO2) nos termos das quais os fabricantes pagarão a partir de 2020 pesadas multas se na média ponderada dos novos carros vendidos os valores-limite forem ultrapassados. Entretanto e dando continuidade às queixas dos consumidores, a norma de homologação dos consumos mudou, passando a seguir o protocolo WLTP (Worldwide Harmonized Light Vehicles Test Procedure – metodologia de avaliação dos veículos ligeiros à escala mundial).
Como quase tudo na vida o WLTP é um pau de dois bicos. Por um lado, aproxima um pouco mais os valores de consumo testados em laboratório da realidade observada no dia-a-dia. Por outro, ao constatar consumos maiores, põe os novos carros na linha de mira da fiscalidade, designadamente em Portugal.
Marcas podem sair da Europa
Que vão fazer os fabricantes? Tal como o Marquês de Pombal a seguir à ruína de Lisboa, vão tentar enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Para algumas marcas, esmagadas por multas e penalizações, poderá dar-se o caso oposto já em 2020. Como alertou esta semana João Seabra, diretor-geral da KIA Portugal, por ocasião da apresentação do novo modelo XCeed, alguns fabricantes poderão optar por deixar de vender na Europa e outros por tentar repercutir as perdas nos preços de venda ao público.
Como nenhum dos dois cenários augura nada de bom para o consumidor, que poderemos esperar? Ou, dito de outra forma, que pensa a indústria fazer perante a aproximação de tempos de incerteza?
As estratégias diferem mas o seu ponto comum é introduzir no portfólio das marcas um número maior de veículos electrificados, sejam estes híbridos (carregáveis na ficha, ou não) ou totalmente eléctricos, de forma a baixar a média das emissões dos veículos vendidos.
Crentes e agnósticos
Dizê-lo é mais fácil que fazê-lo, tanto mais que a conversão ao credo verde agora dominante tem diversas leituras. Há os fundamentalistas, como a Toyota ou a Volvo que anunciaram o fim do diesel nas novas viaturas ligeiras (o que no caso da marca nipónica não se aplica aos comerciais: pick-ups, furgões, etc). Há os crentes de primeira hora como a Nissan que, tendo sido pioneira em 2010 no lançamento de carros 100% eléctricos com o Leaf, não necessita de provar a sua fé. Não cortando de vez com o gasóleo, aposta em novos motores a gasolina, em particular os sobrealimentados de três cilindros e 1300 cm3 desenvolvidos em parceria com a Mercedes e a Renault que vão equipar do Micra ao novo Juke e do Qashqai ao X-Trail. E há, como no tempo de Blair e de Schroeder, os defensores da terceira via, ou seja, neste caso, nem caça ao diesel nem hossanas ao admirável mundo eléctrico.
É o caso da Kia que juntamente com a Hyundai integra o principal construtor sul-coreano. A estratégia é não matar os motores a gasóleo cedo demais porque, como referiu João Seabra, a diabolização do diesel na Europa teve um efeito perverso em termos ambientais. Os consumidores viraram-se para os motores a gasolina e estes, sendo termicamente menos eficientes, emitem sempre mais dióxido de carbono que os equivalentes a gasóleo: as leis da física, particularmente as da termodinâmica são o que são, independentemente das modas e dos gostos.
Há sinais, dos quais tem dado eco, por exemplo, a imprensa francesa, de as emissões de estufa estarem a subir, o que é o oposto do pretendido. Acresce que as carroçarias neste momento no goto dos consumidores são as dos SUV e Crossover (à volta de 48% das vendas na Europa). São mais vistosas, têm mais espaço e posição de condução mais elevada mas sendo estas viaturas mais altas e menos aerodinâmicas gastam mais combustível, logo emitem mais CO2.
Assim surge uma razão suplementar para os fabricantes se verem e desejarem em matéria de redução de emissões: os carros que as pessoas (ainda) querem comprar são os que contribuem mais para a degradação climática.
O regresso da Terceira Via
Aquilo que designei como terceira via (por analogia com os políticos que, no final da década de 90, quiseram criar um caminho intermédio entre a economia de mercado e a planificada) tenta a quadratura do círculo: continuar a fabricar SUV, parte dos quais a gasóleo, sem com isso ser penalizado ambiental, fiscal e ideologicamente.
Como? Sem prejuízo de apostarem também na gasolina, no híbrido e no eléctrico no conjunto da gama, voltam à ideia dos primeiros carros híbridos, melhorando-a tecnologicamente. Os primeiros híbridos como o Honda Insight tinham motor térmico e alguma ajuda eléctrica dada por um motor/gerador. Acumulados numa bateria recarregável (na desaceleração ou travagem do carro) alguns cavalos suplementares mas pouco duradouros auxiliavam nas subidas, ultrapassagens, etc. O efeito no consumo era algum mas sem comparação com o observado nos híbridos desenhados de raiz como o Toyota Prius, onde a tracção era sempre eléctrica e o motor térmico auxiliava o eléctrico e/ou ajudava a recarregar a bateria. Esta solução, designada como o híbrido em paralelo, é mais eficiente mas também mais complexa e cara.
Híbrido mas não muito
Com a tecnologia “mild hybrid” (que se pode traduzir por hibridação ligeira) o que a Kia faz é manter o motor a gasóleo, acrescentando-lhe uma bateria recarregável em andamento de 49 V e sistemas de recuperação de energia na travagem e desaceleração. O alternador e o motor de arranque são substituídos por uma geringonça (coisa de sucesso garantido nos tempos que correm) que é também motor eléctrico auxiliar. Os cavalos suplementares guardados na bateria são lançados a galope em situações de aceleração franca (ultrapassagens, subidas, etc), funcionando como uma espécie de segundo turbo de efeito efémero. Ou seja e ao contrário dos híbridos propriamente ditos, as vantagens do “mild hybrid” fazem-se sentir na estrada e não tanto na cidade.
A solução é mais simples e barata que um híbrido integral e é vista com bons olhos pelo sistema fiscal, nomeadamente pelo português, que, perante uma redução anunciada de 15% nas emissões e de 5% no consumo, desonera o imposto a pagar em 40%, ou seja o carro custa o que custaria se fosse só a gasóleo.
Tanto quanto me foi possível observar num primeiro contacto com o Kia Sportage, do ponto de vista da condução, do espaço a bordo ou do equipamento não há grandes diferenças relativamente ao turbodiesel anterior. Há uma melhor resposta em aceleração e uma incidência, ainda que relativamente marginal, no consumo: num carro praticamente novo observei valores de 7 a 8 litros de gasóleo aos cem após percursos em estrada, auto-estrada e cidade.
Não é uma revolução mas também nunca foi isso que as “terceiras vias” prometeram. Mas sempre se evita que o distinto engenheiro germânico Rudolf Diesel [inventor do motor homónimo] nos fique a rogar pragas a partir do além.
Quanto a preços o Kia Sportage “mild hybrid” vai dos € 31990 (115 cavalos) aos 35290 (136 cv), havendo que contar com mais € 1000 se optarmos pela eficiente caixa automática de sete velocidades. A campanha de lançamento em vigor baixa em cerca de € 4500 aqueles valores de venda.