Um dos maiores desafios do Automóvel Clube do Oeste (ACO) foi o de organizar a edição 2020 das 24h de Le Mans, considerando todos os efeitos da pandemia do Covid-19. Em 1968, quando a corrida teve de ser adiada para setembro, as perspectivas eram diferentes. Bem diferentes…
Há 52 anos, o mundo estava em plena ebulição. Além da Primavera de Praga e da Passeata dos Cem Mil – que foi um entre muitos acontecimentos que levaram o governo militar do Brasil a deflagrar o infeliz AI-5 em 13 de dezembro daquele ano – o mês de maio entrou para a história como o mês dos protestos do movimento estudantil não só na França, mas também em diversos outros países espalhados pelo planeta.
Esse movimento, iniciado com o ‘Manifesto de 22 de março’ e que teve como um de seus grandes mentores o franco-alemão Daniel Cohn-Bendit (hoje, aos 75 anos, deputado do Parlamento Europeu) foi de suma importância na luta pelos direitos civis, a liberdade sexual, a causa feminista, a defesa dos direitos dos imigrantes e, também, das minorias, pregando a igualdade entre brancos e negros, homossexuais e heterossexuais.
Assim como hoje, o clamor por justiça e igualdade se fazia presente em 1968 (Foto: Forix)
“Il est interdit d’interdire!”, era a senha, o aforismo proferido pela primeira vez por Jean Yanne nas ondas da rádio RTL, slogan instantâneo do movimento. E, em português, nome de música no Brasil. A polêmica ‘É proibido proibir’, que Caetano Veloso compôs e defendeu com Os Mutantes, nas eliminatórias do Festival Internacional da Canção (FIC), sendo mal-recebida pela turma politizada, que tascou uma vaia inenarrável e ouviu, em troca, um furibundo discurso de Caetano Veloso, protestando contra o protesto da plateia.
Afinal, é proibido proibir.
Em território francês, os protestos contra o governo de Charles de Gaulle, considerado pelos jovens e pela classe trabalhadora como uma ditadura disfarçada, convulsionaram o país e viraram a capital Paris do avesso – cessando no dia 30 de maio. Esses eventos foram o suficiente para que as 24h de Le Mans vencidas por Pedro Rodríguez e Lucien Bianchi, num Ford GT 40, fossem transferidas exatamente para setembro, por coincidência, justamente quando a corrida deste ano se realiza.
Algumas novidades para a 88ª edição das 24h de Le Mans já estavam previstas sem a pandemia. A mais impactante delas foi a mudança do formato dos treinos classificatórios, considerado longo demais. Até o ano passado, os pilotos entravam no traçado de mais de 13km de extensão para três sessões de duas horas onde, no combinado dos tempos, era conhecido o pole-position geral e de cada uma das categorias presentes.
A partir deste ano, muda o formato. Haverá nada menos que 11h de treinos livres, divididos em quatro sessões – e após as duas primeiras – estava prevista uma sessão classificatória com duração de apenas 45 minutos. Desse treino, sairiam seis carros cada, das classes LMP1, LMP2, LMGTE-PRO e LMGTE-AM para a hiperpole — aí sim, a grande notícia de 2020.
Com a corrida em setembro, a perspectiva é de que o período da noite dure até 9 horas (Foto: Toyota)
Será uma sessão de qualificação na base do ‘tudo ou nada’, onde os carros classificados vão para apenas meia hora de pista aberta, com dois sets novos de pneus à disposição. Esse treino acontecerá às 11h30 locais de sexta-feira, 6h30 da manhã de Brasília. Vão à pista os cinco LMP1 – já que a Ginetta desistiu — e seis das demais classes. O grid será fechado aí, com a obediência de ordem independentemente do posicionamento e dos tempos, com LMP1, LMP2, LMGTE-Pro e LMGTE-AM se sucedendo no pelotão de 59 carros.
E a pandemia também provocou outras situações não-previstas: uma das mais cruéis foi cancelar a venda de ingressos – que estava em andamento – e promover a corrida com portões fechados para evitar aglomerações e disseminar ainda mais o coronavírus, atendendo determinações das autoridades sanitárias francesas. Quem garantiu seus bilhetes de forma antecipada terá benesses para assistir in loco – se possível – a edição de 2021.
No paddock, o ACO promete monitorar todas as condições dos participantes, seja membros do estafe das equipes e pilotos – além da mídia local e internacional que cobrirá o evento – com testes rápidos e toda a segurança que se espera que exista para que as 24h de Le Mans aconteçam pelo menos dentro do estritamente necessário.
A 88ª edição das 24 Horas de Le Mans acontece neste fim de semana (Foto: Toyota)
Outras consequências do adiamento e da Covid-19 foram o cancelamento do Journée Test, os treinos coletivos sempre realizados com algumas semanas de antecedência da corrida francesa e também do desfile dos pilotos na sexta-feira, que até este ano nunca era dia de atividade de pista – as estradas voltavam a ser abertas aos carros de passeio e o público podia passear livremente pelo pit-lane e tirar fotos no meio da pista, pelo menos na reta principal.
Nesse ano, sem público algum, fechar as estradas não será necessário, e o ACO, com sabedoria, condensou esta edição das 24h de Le Mans em quatro dias apenas, de quinta a domingo – descontando, claro, a véspera com as verificações técnicas e administrativas – outro evento que é tradicionalmente realizado no centro de Le Mans e com a presença dos torcedores, igualmente impossibilitados de acompanhar esse momento clássico da corrida.
Revolução à vista: a hiper mudança prevista para o futuro
Quanto ao futuro, ACO e FIA trabalham para minimizar os problemas decorrentes da maior crise sanitária mundial em mais de um século, abrindo mão de um campeonato bienal para retomar em 2021 uma ‘normalidade’. A temporada do ano que vem do Mundial de Endurance, com Le Mans de cereja do bolo – e espera-se, normalmente, em junho – terá de seis a sete etapas. Com grande chance de começar em março, no mesmo fim de semana das 12h de Sebring, em evento conjunto com a IMSA.
Por falar nisso, a chamada convergência de regras entre ianques e franceses terá de esperar um pouco mais. Já se fala que os protótipos LMDh previstos para correr não só em La Sarthe e no WEC como também na América do Norte podem ficar somente para 2023. No âmbito dos hipercarros, novidades à vista: o regulamento está aprovado para 2021, porém há um consenso de que os LMP1 sem sistemas híbridos serão ainda permitidos por pelo menos uma temporada na nova classe já batizada de Le Mans Hypercar (LMH).
Antecipando-se a isso, a Alpine confirmou que estará na categoria principal com um protótipo ainda dentro das atuais regras técnicas. Trata-se do Rebellion R13 que será rebatizado como Alpine e contando, ainda, com o apoio da Oreca, que foi a construtora do carro. A marca de Dieppe, ligada à Renault, pode ainda trazer da Fórmula 1 o propulsor de 1,6 litro V6 Turbo que leva o losango do construtor francês e utilizá-lo – com o auxílio de um sistema híbrido padrão, a ser ainda indicado – dentro das regras da futura LMDh – que, aliás, deve trazer mais ‘players’ de volta ao jogo do endurance mundial.
A Toyota já iniciou os testes com seu novo hipercarro para o WEC (Foto: Toyota)
A categoria dos hipercarros prevê carros com peso mínimo estipulado em 1040 kg podendo – ou não – usar motores híbridos, apenas no eixo dianteiro. A potência dos motores a combustão não deverá superar 750 cavalos, numa previsão de que os tempos de volta em Le Mans subirão 15 segundos em relação ao que viram os LMP1 atuais em La Sarthe – estimativa de 3min30seg.
Os sistemas híbridos poderão atingir, no máximo, 200 kW, equivalentes a 270 cavalos. Isso também provoca uma restrição inédita aos protótipos LMP2 que hoje percorrem uma volta na casa de 3min24seg: a partir do ano que vem, os motores Gibson V8 terão quarenta cavalos a menos com o uso de restritores de ar.
Além da liberdade de construção dos hipercarros no que tange à aerodinâmica, é prevista a utilização de Balanço de Performance (BoP) para equiparar os LMH com sistemas híbridos e sem. Três construtores estão previstos dentro das novas regras: a fiel Toyota, a Glickenhaus – que pretende inscrever dois carros em 2021 no FIA WEC e Le Mans – e a ByKolles.
A Aston Martin, anunciada por ocasião da coletiva do ano passado em que foi revelada a mudança de formato da categoria principal, roeu a corda por motivos de F1: todo o investimento foi direcionado por Lawrence Stroll, sócio da marca britânica, a absorver a equipe Racing Point. O desenvolvimento do Valkyrie, projeto que teve participação do mago Adrian Newey, sequer aconteceu.
O primeiro hipercarro que vai fazer testes para valer com vistas a 2021 será o GR Supra da Toyota, a partir de outubro.
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