O comerciante Carlos de Carvalho, 45 anos, trabalhou desde garoto no estabelecimento criado pelo pai, o Via Stella Café e Restaurante, na frente do tradicional colégio Dante Alighieri, em São Paulo, que garantia 90% de seu público. O longo período fechado durante a pandemia, porém, tornou a sobrevivência do negócio inviável. Mesmo com o apoio da locatária do imóvel, que aceitou a interrupção do pagamento do aluguel, as despesas não paravam de crescer. A solução foi fechar o Via Stella em abril. Junto com a esposa, ele passou a morar na casa da mãe, no bairro da Pompeia, para cortar despesas. Agora, Carlos tenta vender o ponto do restaurante para quitar sua dívida de R$ 200 mil com o governo e, enquanto isso, passou a trabalhar de motorista de Uber, um caminho que muitos profissionais liberais e pequenos empresários em dificuldades estão tomando para garantir alguma renda imediata. Trocou o carro por um menor e não sabe muito bem o que pensar sobre o porvir. “Meu primeiro objetivo é vender o ponto para me livrar da dívida, que custa R$ 8 mil por mês, e só dá para pensar no futuro quando o coronavírus passar”, afirma.
Quem teve que fechar seu estabelecimento por causa da crise sabe perfeitamente o que é o sofrimento da classe média. E não foram poucos. Só no setor de bares e restaurantes, segundo a associação do setor, a Abrasel, 300 mil negócios encerraram atividades no País. Na cidade de São Paulo são 12 mil até agora. O turbilhão em que se transformou a vida de Carlos é experimentado atualmente por milhões de brasileiros. Há crise no setor cultural, no turismo, na indústria. Outra categoria que sofre especialmente com a situação é a dos professores. Só no ensino médio, segundo o Ministério da Educação, 90 mil perderam o emprego. A crise na classe média se agrava e os problemas estão longe de serem superficiais, envolvendo profundas mudanças de rumo e queda no padrão social. Embora essa parte da população esteja longe de correr risco alimentar, ela também começou a economizar na compra de comida, por causa da inflação, está endividada, sente seu patrimônio encolher e sofre com planos interrompidos. Projetos profissionais estão ruindo ou paralisados por conta dos efeitos da pandemia e as pessoas estão, de fato, ficando mais pobres. Muitas famílias estão em modo de prontidão, sem saber que direção tomar. Filhos estão voltando a morar com os pais e cresce o número de jovens “nem nem”, que não estudam ou trabalham.
Um estudo feito pelo Instituto Locomotiva, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com brasileiros de renda familiar até R$ 7,2 mil mostra que no ano passado houve uma grande mobilidade social, invariavelmente para pior: a parte da população situada na classe média tradicional caiu de 51% para 47%, o pior patamar desde 2010. O Locomotiva calcula que 4,9 milhões de brasileiros tenham tombado da faixa intermediária de renda para a classe baixa e seis em cada dez cidadãos viram seu rendimento diminuir no ano passado. Afetada pelo desemprego, que atinge 13,9 milhões de pessoas, a classe média abre mão do plano de saúde, transfere seus filhos de escolas privadas para públicas e quem ainda tinha o luxo da empregada, deixa de tê-lo. Segundo o estudo, 53% da classe média cortaram despesas com um desses itens. Outro dado preocupante é que 71% dos brasileiros adultos desse grupo social, cerca de 55 milhões de consumidores, estão com pelo menos uma conta atrasada. Quem teve a chance de cortar despesas com serviços como TV por assinatura, cortou. Outro caminho seguido por um número cada vez maior de pessoas é buscar uma renda extra, fazendo bicos, abrindo um pequeno comércio ou dirigindo para o Uber.
O maior problema que o professor do ensino básico Sérgio Luiz Máximo, 39 anos, e sua esposa, a também professora Letícia Borba, 38 anos, enfrentaram foi a adaptação à nova realidade do ensino híbrido: dar aulas em casa. Foi uma mudança que custou – e ainda custa caro, já que a família comprou tudo que precisava em dez vezes. Sérgio explica que não tinha estrutura o suficiente e que foi preciso adquirir tudo novo: computador, mesa, tablet, boas cadeiras para fazer com que o trabalho não se transformasse em dor de cabeça, fora aumentar a velocidade da internet, claro. “Cortamos tudo, até a tradicional pizza de final de semana e TV por assinatura”, diz. Já Letícia perdeu horas de aula e viu a sua renda cair, algo que por um lado permitiu que ela ficasse mais com as filhas do casal, duas gêmeas de 7 anos. Sérgio explica que foi preciso tirar as crianças do balé, do curso de inglês e focar somente no essencial. “Só não deixei de pagar as contas, mas estou literalmente no vermelho”, afirma. E, para ajudar na renda familiar, os dois resolveram ir além do magistério e começaram a comercializar hambúrgueres artesanais congelados para vender. “Estamos no começo ainda, nada muito oficial, mas estamos criando uma pequena empresa ”, conta.
Endividamento em alta
Felizmente Sérgio não tem grandes dívidas, um drama dos brasileiros de classe média, que também sofrem com a inflação crescente, que ficou 30% acima do IPCA, de 4,5%, em 2020, e os altos juros bancários. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio (CNC), o endividamento cresceu 2,8% no ano passado e alcançou 66,5% da população. Quem entra na espiral das dívidas, frequentemente precisa encerrar um negócio ou se desfazer do patrimônio para resistir. A pequena empresária Lilian Varella, de 60 anos, dona do bar Drosophyla, vive esse dilema. Seu estabelecimento, próspero antes da pandemia, enfrenta sérias dificuldades. Ela emprestou dinheiro no Programa de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Pronampe), seu marido contraiu dívidas bancárias para pagar em dez anos, reduziu o número de empregados de 14 para 4 e tenta manter o estabelecimento, instalado numa casa tombada na Rua Nestor Pestana, em São Paulo. Ela colocou à venda, inclusive, o mobiliário do bar. “É um desespero não saber o que vai acontecer amanhã. Depois de 35 anos de bar é o pior momento da minha vida”, diz. “Não sei até quando vou continuar, mas não consigo fazer planos para mais de um mês.”
No setor cultural, também há uma classe média apavorada com a falta de trabalho e de perspectivas. Conhecido por seus papéis em filmes, novelas e peças de teatro, o ator Marcos Breda, 60 anos, viu diversos projetos artísticos serem cancelados ou remarcados por causa da Covid-19. Ainda que tenha gravado quatro longas em 2020, ele explica que atuar no Brasil nada lembra os salários de Hollywood. “Se eu tivesse que me sustentar apenas com o salário desses trabalhos, não conseguiria”, explica. Para conseguir manter o estilo de vida, decidiu tirar um hobby da gaveta e virou astrólogo. Pela internet, ele atende a sua clientela conquistada nas redes sociais e cobra valores modestos para elaborar o mapa astral da pessoa. Outra solução foi cancelar tudo que era supérfluo, como canais a cabo e ainda fazer permuta na escola e na universidade dos dois filhos. “Em troca de aulas de teatro, ganhei um desconto na mensalidade”, conta. Já a curadora de arte Andréa Cals, 56 anos, viu o universo cultural e sua profissão sofrerem um baque com o governo Jair Bolsonaro e a pandemia. “Os editais voltados à cultura sumiram”, diz. “O que me ajudou bastante foi ter casa própria e ter abolido o carro faz tempo. Mas pagar as contas é sempre uma luta.”
A classe média vem sofrendo de várias formas com a crise econômica e não se trata apenas de uma questão de abandonar luxos ou caprichos. Seu mundo de símbolos de status está ruindo. Há perda da qualidade de vida e da capacidade de consumo. Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) indicam que oito em cada dez famílias brasileiras com renda de mais de cinco salários mínimos perderam receita em termos reais, descontada a inflação. Plano de saúde, escola particular e projetos para trocar de carro ou mudar de casa foram abandonados diante de tanta incerteza. O futuro da classe média no Brasil é cada vez mais preocupante e algo parece inevitável: vai diminuir ainda mais.