Econômico, porém caro
O professor universitário Eduardo Pellanda, de Porto Alegre, dirige 14 km para ir e voltar do trabalho, na PUC-RS. Desde julho do ano passado, ele tem um Nissan Leaf – que adora. “Dirigir um carro elétrico é incomparável. É silencioso, responde no ato e tem baixo custo de manutenção”, diz ele, que antes do Leaf teve um BMW i3 elétrico, dois Prius e um Corolla híbridos (em que o motor elétrico suplementa um motor a combustão mais econômico). Ele costuma plugar o carro numa estação de recarga na garagem do condomínio (algo que poucos prédios têm). Gasta R$ 0,10 de eletricidade a cada km rodado, um terço do que pagaria dirigindo um carro 1.0 a gasolina. E a recarga também é muito mais sustentável, já que 83% da eletricidade gerada no Brasil vem de fontes limpas e renováveis.
Tudo muito bom. Só que para comprar um Leaf, que é um carro básico, você tem de desembolsar assustadores R$ 277.990. Com esse dinheiro, daria para comprar um luxuoso sedã Mercedes-Benz Classe A ou um poderoso Land Rover Discovery, ambos com motor a combustão – ou, então, nada menos do que seis Fiat Mobi 1.0 flex (gasolina/álcool).
O carro elétrico é tão caro, no Brasil, porque paga muito imposto, certo? Sim e não. Os modelos à venda no país são importados – mas, desde 2015, os veículos elétricos estão isentos de Imposto de Importação. Então esse problema eles não têm.
Ok, até há uma excentricidade tributária. É o cálculo do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que se baseia no peso do automóvel. E os carros elétricos são muito pesados, por causa das baterias. Enquanto o Fiat Mobi, por exemplo, pesa 907 kg, o Nissan Leaf tem 1.580 kg. Quase o dobro. Os carros elétricos geralmente ficam nessa faixa, de 1.500 a 1.700 kg. E isso significa que eles são taxados em 14% a 18% de IPI, enquanto um carro 1.0 flex paga 7%. “É preciso resolver essa distorção, retirando o fator peso e cobrando por eficiência energética ou pela emissão de poluentes. Como está, continuaremos pagando como se [o elétrico] fosse carro de luxo”, diz Adalberto Maluf, presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE).
É verdade. O modelo elétrico mais barato do Brasil é o E-JS1, da marca chinesa Jac Motors, que custa R$ 150 mil. Assim como o Nissan Leaf, ele é um carro simples – mesmo caso do Renault Zoe, que sai por R$ 205 mil (quatro vezes o preço do Clio a gasolina, no qual se baseia).
Mas não dá para colocar toda a culpa do preço no IPI. Mesmo se ele fosse reduzido de 18% para 7%, os carros elétricos continuariam caríssimos por aqui. E isso tem três explicações. A primeira é que eles ainda vendem pouco, e portanto não se beneficiam da chamada economia de escala: os custos fixos que as montadoras têm com esses carros (como marketing, assistência técnica e treinamento de funcionários, por exemplo) precisam ser cobertos com a venda de um número pequeno de veículos – que, por isso, acabam custando mais.
O segundo ponto é que, no Brasil, a indústria automobilística decidiu posicionar o carro elétrico como artigo de luxo: já que vai vender pouco mesmo, ela cobra caro. É a mesma política adotada pela Apple no país. O terceiro fator é o dólar, que disparou na pandemia.
Mesmo se conseguíssemos resolver tudo isso, os carros elétricos continuariam pouco acessíveis. Porque eles ainda são caros, e ponto final. Por isso, EUA, China, Índia, Japão, França, Alemanha e Reino Unido subsidiam parcialmente os preços. Na Inglaterra, por exemplo, você paga 21.990 libras esterlinas (cerca de R$ 155 mil) por um Leaf, já contando um incentivo de 4.500 libras que é pago pelo governo britânico. Nos EUA, essa ajuda pode chegar a US$ 7.500, mas não vale mais para modelos da Tesla e da GM – pois elas já venderam mais de 200 mil carros elétricos cada uma.
Os subsídios também explicam o sucesso da Noruega, onde a transição já aconteceu: em 2020, o país se tornou o primeiro do mundo a emplacar mais carros elétricos do que convencionais (eles foram 54% das vendas; contabilizando também os híbridos, 83%). “É importante que o veículo elétrico seja competitivo em preço. Os políticos noruegueses montaram uma série de incentivos, que funcionam bem”, diz Christina Bu, secretária-geral da Associação Norueguesa do Veículo Elétrico. Os elétricos são isentos de imposto de importação e têm 25% de abatimento no Imposto sobre Valor Agregado (IVA), bem como descontos em pedágios, gratuidade em estacionamentos públicos e acesso a faixas de ônibus.
No Brasil, além da isenção do Imposto de Importação, há isenção de IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores) em alguns Estados (Maranhão, Paraná, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte). Em âmbito federal, existem projetos de lei que preveem a isenção de tributos como IPI, PIS/Pasep e Cofins, mas não avançam no Congresso. “O crescimento da frota elétrica nacional vai acontecer pelo preço, pois o custo operacional [por km rodado] desses veículos já é muito menor que os de combustão interna. Mas estamos anos atrasados em tudo”, lamenta Lucas Di Grassi, piloto da Fórmula E (campeonato de elétricos inspirado na F-1) e embaixador da ONU para o meio ambiente.
Há quem diga que uma possível saída para popularizar o carro elétrico no Brasil seria endurecer as normas ambientais, o que forçaria as montadoras a ir migrando para veículos não poluentes. “Isso significa colocar em prática padrões agressivos de desempenho mínimo para veículos leves e pesados, precificar os impactos dos combustíveis e refletir sobre como eles prejudicam a saúde e o meio ambiente. Ou seja, será preciso tributar a gasolina e o diesel adequadamente”, diz Jacob Teter, analista da International Energy Agency (IEA), entidade que reúne os governos de 30 países em debates sobre o setor de energia. O Brasil não é membro da IEA – e aqui, onde os preços dos combustíveis já têm subido muito (só no primeiro semestre, a gasolina ficou 25,4% mais cara), não parece nada viável aumentar os impostos sobre eles.
Por outro lado, essa disparada dos preços dos combustíveis pode, sim, estar ajudando os carros elétricos. Nos primeiros quatro meses de 2021, foram vendidos 7.290 deles no país, um aumento de 29,4% sobre o ano anterior, segundo dados da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Isso significa que 1,6% de todos os carros vendidos no Brasil é elétrico ou híbrido – estamos bem abaixo da média global, 4,6%, mas em rápido crescimento.
No Brasil os modelos puramente elétricos, como o Leaf, o Zoe e o JS1, são minoria: apenas 6% do total. Todos os outros veículos elétricos, 94%, são híbridos (muito diferente do que acontece nos EUA, onde elétricos e híbridos ocupam fatias iguais).
Os híbridos são um pouco menos caros (pois vêm equipados com baterias menores), mas o principal atrativo é que eles não têm limitações de autonomia, já que também podem ser abastecidos com gasolina. A preferência pelos híbridos reflete a insegurança dos compradores brasileiros, que temem não encontrar pontos de recarga elétrica. Isso também está melhorando, com ressalvas.
Na cidade de São Paulo, desde março de 2021 os novos prédios comerciais e residenciais são obrigados a ter ponto de recarga para carro elétrico. Mas há duas brechas: primeiro, a lei só se aplica aos prédios cuja obra começou em março ou depois (os que já estavam sendo construídos não precisam se adequar). Por isso, os efeitos dela só começarão a ser sentidos daqui a dois ou três anos, quando esses edifícios mais novos ficarem prontos. O outro porém é que a lei não define uma quantidade mínima. As construtoras podem colocar só um carregador (o que está longe de ser suficiente num cenário de maior adoção do carro elétrico), e já estarão cumprindo a regra.
Para quem mora em casa (85% dos brasileiros, segundo o IBGE, com metade das residências abrigando um carro na garagem), essa questão é mais simples: basta puxar um ponto de eletricidade para a garagem, o que qualquer eletricista faz. Ao chegar em casa, no final da tarde, a pessoa conecta o veículo e deixa ele recarregando durante a noite, para sair de casa na manhã seguinte.
Problema resolvido, certo? Mais ou menos. As tomadas comuns, de 120 volts, demoram muito para encher a bateria do carro – até 72 horas. Por isso, os veículos elétricos também dependem dos carregadores Nível 2 e Nível 3, que são instalados em locais públicos e trabalham em velocidade muito maior (veja quadro abaixo).
No Brasil, dependendo da estimativa, existem 600 a 700 pontos de recarga. Parte deles está em cinco “corredores elétricos”: as estradas Anhanguera e Bandeirantes (SP) e os percursos rodoviários São Paulo-Rio, São Paulo-Curitiba, Paranaguá-Foz do Iguaçu (PR) e Curitiba-Tubarão (SC). Dá para fazer esses trajetos com carro elétrico sem se preocupar, pois eles já têm pontos de recarga suficientes para cobrir todo o caminho. Também há uma rede de 700 km sendo montada entre Torres e Chuí, no Rio Grande do Sul, e outra que irá conectar seis Estados do Nordeste: o Corredor Verde, que começa em Salvador (BA) e vai até Natal (RN) e deve ficar pronto em 2021.
Os pontos de recarga rápida são fundamentais, porque transformam a experiência de uso do carro elétrico. Conectado a um deles, o Tesla Model 3 (ainda não vendido no Brasil) recarrega 80% da bateria em apenas 31 minutos. Se o motorista estiver com pressa, bastam 5 minutos plugado – e o Tesla sai de lá com mais 120 km no “tanque”. Mas essa agilidade exige um carregador de terceira geração da Tesla, o Supercharger V3. A empresa diz que já instalou mais de 25 mil carregadores, a maioria nos EUA, mas não diz quantos têm a nova tecnologia.
Até bem pouco tempo, aliás, os carros da Tesla só podiam ser conectados a carregadores exclusivos da marca (a alternativa era a tomada comum, extremamente lenta). Em 2018, no entanto, a empresa se viu obrigada a oferecer um adaptador para o padrão CCS (Combined Charging System), que é o adotado em carros de outras marcas, como GM e BMW. Já o Leaf usa um terceiro padrão, o CHAdeMO (abreviação para a frase “vamos tomar uma xícara de chá?” em japonês, fazendo referência ao tempo de recarga), que é incompatível com os outros. Existem quatro padrões principais, e a maioria dos carros só aceita dois. É uma confusão e tanto (veja quadro abaixo).
Hoje, com os veículos a combustão, você simplesmente para em qualquer posto quando precisa abastecer. Com os elétricos, infelizmente, não é assim: é preciso verificar se o “eletroposto” oferece carregadores compatíveis com o seu veículo. Isso também é ruim para os postos, pois reduz o público, e portanto o faturamento. Por que eles não instalam todos os tipos de carregador, então? É que a conta não fecha.
Os carregadores mais potentes chegam a custar US$ 50 mil cada um. Num cenário em que ainda há poucos carros elétricos, e os eletropostos não dão lucro (geralmente são subsidiados pelos fabricantes dos veículos ou por empresas de energia), seria inviável quadruplicar o número de carregadores em cada local. Mas, sem isso, os consumidores ficam hesitantes em comprar carros elétricos – o que impede que os eletropostos tenham lucro. É um círculo vicioso. A única maneira de rompê-lo seria obrigar todos os fabricantes de veículos a usar o mesmo padrão de carregador.
Você deve estar se perguntando: o Brasil teria eletricidade suficiente para abastecer todos os carros, se eles fossem elétricos? Afinal, o país atravessa sua pior seca em 90 anos, e há risco de racionamento de energia. São duas questões diferentes. A crise atual se deve à seca e à dependência excessiva que o Brasil tem das hidrelétricas (que geram 60% de toda a energia do país). Com ou sem carro elétrico, isso é um problema; o país precisa investir para ampliar sua capacidade de geração de outras fontes, como solar e eólica.
Dito isso, vamos fazer a conta. Uma análise da Universidade do Texas (2) estimou que, se todos os carros de lá fossem elétricos, esse Estado americano teria de produzir 30% mais energia para abastecê-los. No Brasil, onde há menos carros a cada 100 habitantes, seria necessário aumentar em 15% a geração de eletricidade – o que equivaleria a construir mais três ou quatro usinas de Belo Monte.
Fazer isso em uma ou duas décadas, por exemplo, parece perfeitamente razoável. Outra possível solução seria estocar a eletricidade que hoje é desperdiçada. As usinas eólicas, que já são responsáveis por 10% de toda a energia gerada no país, não têm o que fazer com a eletricidade produzida pelo vento que passa de madrugada (pois não há demanda nesse horário). Não há como “estocar vento”, na famosa expressão da ex-presidente Dilma Rousseff.
Mas essa tecnologia está surgindo. A Tesla está construindo duas superbaterias estacionárias, no Texas e na Califórnia, com capacidades impressionantes. O sistema da Califórnia, formado por 449 módulos (com 7 m de comprimento e 23 toneladas cada um), poderá armazenar até 1,2 gigawatt – o suficiente para alimentar toda a cidade de São Francisco, com 870 mil habitantes, por seis horas. Com baterias como essa, seria possível aproveitar melhor a energia eólica. E também a solar, resolvendo um problema clássico desse tipo de energia: ela gera seu máximo de eletricidade ao meio-dia, quando o sol está mais forte, e não no momento em que a demanda é maior (entre 18h e 21h).
A superbateria da Califórnia vai custar US$ 300 milhões. Mas, ao longo dos próximos 20 anos, ela irá se pagar e gerar uma economia de US$ 100 milhões – pois, graças a ela, não será mais necessário acionar as usinas termelétricas (a gás ou carvão), cuja energia custa mais caro, para abastecer o Estado nos horários de pico.
A vantagem da eletrificação não é só ambiental, é econômica também. Um estudo da Universidade Harvard (3) estimou que cada carro elétrico acaba gerando uma economia de US$ 0,07, para a sociedade, a cada quilômetro rodado (US$ 10 mil durante a vida útil do veículo, de 240 mil km). É que, como ele não emite poluentes, acaba reduzindo as hospitalizações por doenças pulmonares e cardiovasculares – que geram custos diretos e também abreviam a vida das pessoas, fazendo com que consumam e produzam menos.
Até o começo do século 20, o principal meio de transporte nas cidades era o cavalo. Só em Londres, havia 50 mil deles. Em Nova York, 100 mil. Isso criava grandes problemas, especialmente pela quantidade de cocô acumulada nas ruas – cada animal faz cerca de 10 kg por dia. Além do cheiro insuportável, aquilo atraía moscas, que espalhavam febre tifoide e outras doenças. Em 1894, o jornal britânico The Times previu: “Em 50 anos, todas as ruas de Londres estarão enterradas sob três metros de esterco”.
Isso não aconteceu. O carro a combustão chegou e resolveu os problemas da época. Para depois, é verdade, criar outros. Com os veículos elétricos, pode acontecer o mesmo. Eles são decisivos para frear o aquecimento global (hoje, carros e ônibus correspondem a 9% das emissões de CO2), mas também têm impacto ambiental – seu ponto crítico são as baterias, cuja reciclagem ainda é incipiente. O carro elétrico não é uma panaceia. Mas é uma das saídas para o grande dilema do mundo moderno: como tornar a vida melhor e mais confortável, com prosperidade e tecnologia, sem arrasar o planeta.
Fontes (1) 2020 Lithium-Ion Battery Price Survey. Bloomberg NEF, 2020 (2) Switching to electric vehicles could save the US billions, but timing is everything. F Todd Davidson e outros, 2018. (3) Assessing the health impacts of electric vehicles through air pollution in the United States. JD Spengler e outros, 2020.