Uma semana depois da posse do presidente americano Joe Biden, eleito sob a plataforma de defesa do meio ambiente, a General Motors (GM) anunciou que deixaria de fabricar veículos movidos a gasolina e diesel até 2035, investindo fundamentalmente em motores movidos a energia limpa. O anúncio surpreendeu porque, embora outras montadoras também tenham estabelecido prazos para encerrar as vendas de motores tradicionais, a maioria passará por um período de transição. Antes de partir para um elétrico “puro sangue”, os chamados modelos “plug-in”, que são recarregados na tomada, as montadoras vão adotar a chamada tecnologia híbrida, que combina um motor a gasolina ou diesel de menor porte a um motor elétrico. Nem as duas maiores montadoras de automóveis do mundo, a Toyota e a Volkswagen, fixaram um prazo para eliminar completamente os motores a combustão, mesmo planejando investimentos bilionários para desenvolver novas tecnologias de eletrificação ou de hidrogênio.

Na França, o elétrico Ami, da Citroen, é testado em frente ao Museu do Louvre, em Paris, em setembro. O veículo está na categoria quadriciclo e pode ser dirigido por jovens a partir de 14 anos. Foto: Abdulmonam Eassa / Getty Images
Na França, o elétrico Ami, da Citroen, é testado em frente ao Museu do Louvre, em Paris, em setembro. O veículo está na categoria quadriciclo e pode ser dirigido por jovens a partir de 14 anos. Foto: Abdulmonam Eassa / Getty Images

O exemplo da GM ilustra o que os especialistas classificam como a maior transformação da história da indústria automobilística desde que, um século atrás, Henry Ford criou nos Estados Unidos a primeira linha de montagem e transformou o automóvel num produto mais barato e acessível às massas. O desafio das montadoras agora tem quase a mesma dimensão do passado: levar à população veículos elétricos menos poluentes, a um preço que caiba no bolso do consumidor, especialmente o brasileiro, que, na média, gasta entre R$ 60 mil e R$ 80 mil para ter um carro zero quilômetro. Hoje, um carro elétrico importado custa entre R$ 200 mil e R$ 300 mil no país. “É um movimento global irreversível causado por pressões sociais, ambientais, tecnológicas e até econômicas. As montadoras terão de se reinventar. O carro do futuro será uma espécie de celular sobre rodas, com conectividade e digitalização, até chegar num modelo autônomo”, afirmou o sócio-diretor da consultoria Roland Berger, Marcus Ayres.

“A consultoria britânica IDTechEx que, entre outros assuntos, analisa as chamadas tecnologias emergentes, estima que os veículos elétricos (considerando os híbridos) serão 20% do mercado global até 2030. E esse percentual sobe para 80% até 2040”

As concorrentes da GM também estão entrando nesse jogo. A japonesa Nissan anunciou neste ano que todos os seus veículos lançados nos Estados Unidos, Japão e China seriam ou elétricos ou híbridos a partir de 2030. A Volvo, controlada pelos chineses da Geely, também pretende vender apenas veículos elétricos a partir de 2030. A Stellantis, que nasceu da fusão entre a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e o PSA Groupe, com 14 marcas, estará posicionada para competir nos mercados globais, com 39 veículos elétricos disponíveis até o fim de 2021.

As montadoras também estão buscando nas empresas do Vale do Silício as tecnologias que precisam para o futuro e seus carros autônomos. A Hyundai deve fechar em breve um acordo com a Apple. A própria GM e a Microsoft já trabalham juntas. E a chinesa Geely se associou com a Baidu e a Tencent, empresas de tecnologia da China, para desenvolver esses produtos. “Não existe alternativa para o setor automotivo que não sejam essas parcerias com empresas de tecnologia para os carros conectados do futuro”, disse Antônio Jorge Martins, coordenador dos cursos automotivos da Fundação Getulio Vargas.

O painel elétrico touchscreen de um ID.4, da Volskwagen, lançado em janeiro nos Estados Unidos. Foto: Josh Lefkowitz / Getty Images
O painel elétrico touchscreen de um ID.4, da Volskwagen, lançado em janeiro nos Estados Unidos. Foto: Josh Lefkowitz / Getty Images

Se esse cenário ainda parece muito distante, sobretudo no Brasil, em que a fatia majoritária do mercado é composta de veículos populares, essa marcha já começou no mundo e vem ganhando tração a cada ano. A consultoria britânica IDTechEx que, entre outros assuntos, analisa as chamadas tecnologias emergentes, estima que os veículos elétricos (considerando os híbridos) serão 20% do mercado global até 2030. E esse percentual sobe para 80% até 2040. A Roland Berger prevê que até 2027, pelo menos um quarto das vendas globais será de veículos elétricos. Hoje, em mercados como Estados Unidos e Europa, estima-se que esse percentual seja de 10% das vendas. A Noruega tornou-se em 2020 o primeiro país do mundo em que os carros elétricos representaram mais de 50% dos novos emplacamentos.

No Brasil, os elétricos representam atualmente cerca de 1% das vendas de um mercado de quase 2 milhões de unidades. Mas a consultoria MegaDealer, especializada no segmento automotivo, vem notando o aumento do interesse dos brasileiros pelos elétricos. Em 2017, foram vendidas 3.296 unidades. No ano passado, mesmo com a pandemia tendo derrubado as vendas de veículos em geral, os brasileiros compraram 19.745 carros elétricos, uma alta de 499% em relação a três anos antes. O modelo mais vendido, com 9.610 unidades, foi o híbrido Toyota Corolla, já produzido no país e que custa cerca de R$ 130 mil. Entre os modelos totalmente elétricos, a Audi comemorou o primeiro lugar com a venda de 183 unidades do E-Tron, que custa a partir de R$ 500 mil. “Se não houvesse a pandemia, o volume de vendas dos elétricos teria sido maior. É um movimento que vem crescendo a cada ano e é irreversível. Apenas entre 2018 e 2019, o salto nas vendas de elétricos foi de quase 200%”, disse Fabio Braga, gerente nacional da MegaDealer.

Uma estação de recarga de automóveis elétricos da Tesla no Reino Unido. A fabricante produziu apenas 500 mil veículos no ano passado, abaixo do esperado, em razão da pandemia. Foto: Chris Ratcliffe / Bloomberg / Getty Images
Uma estação de recarga de automóveis elétricos da Tesla no Reino Unido. A fabricante produziu apenas 500 mil veículos no ano passado, abaixo do esperado, em razão da pandemia. Foto: Chris Ratcliffe / Bloomberg / Getty Images

A lei do mercado diz que os preços tendem a cair quando as empresas ganham escala nas vendas. Ainda não é o caso dos carros elétricos. A Tesla, montadora americana que nasceu em 2003 com o objetivo de produzir esse tipo de veículo, conseguiu fabricar apenas 500 mil unidades no ano passado, com preços que variam de US$ 37 mil (R$ 199 mil) a US$ 55 mil (R$ 297 mil). Trata-se de um valor elevado para o padrão americano e mais ainda para o brasileiro, que terá de esperar as montadoras ganharem volume de produção para terem preços mais acessíveis.

Alguns especialistas ariscam dizer, no entanto, que a entrada do brasileiro no mundo dos elétricos se dará por outro caminho: o aluguel por assinatura. Pelo menos seis montadoras já lançaram no Brasil o serviço, que já é oferecido por elas em outros países. Diferentemente das locadoras, onde o aluguel costuma ser pago por dia, na assinatura o valor é mensal, a partir de R$ 1 mil, com plano inicial de 12 meses. Ao final do contrato, o consumidor tem a opção de compra do veículo. As montadoras miram clientes que mantêm a opção pelo uso do automóvel, mas não querem se preocupar com documentação, seguro e manutenção. Também são pessoas bastante ligadas às novas tecnologias. “Esse modelo vai transformar bastante o cenário. É essa mudança de paradigma que vai permitir o crescimento da frota de elétricos no país e diluir o impacto do preço elevado, atingindo uma fatia maior de consumidores. Não é coincidência que as montadoras tenham anunciado esse serviço”, disse Ricardo Bacellar, líder do setor de industrial e automotivo da consultoria KPMG.

Vista aérea da fábrica da Tesla em Berlim que deverá produzir 500 mil unidades no local a partir de 2021. Foto: Soeren Stache / dpa / picture alliance via Getty Images
Vista aérea da fábrica da Tesla em Berlim que deverá produzir 500 mil unidades no local a partir de 2021. Foto: Soeren Stache / dpa / picture alliance via Getty Images

Numa pesquisa que realiza há mais de duas décadas sobre o setor automotivo, a KPMG detectou o interesse do consumidor brasileiro pelo carro elétrico. No levantamento, feito em 2019, com 2 mil pessoas de todo o país e diferentes faixas de renda, 90% dos pesquisados disseram que querem comprar um carro elétrico quando este estiver disponível. A KPMG não informava na pesquisa os valores dos elétricos para evitar uma resposta induzida. E 80% responderam que teriam interesse na opção por assinatura, quando a oferta desse serviço no país ainda nem existia.

Num momento em que a Ford anunciou sua saída do país, a pandemia derrubou as vendas de veículos em 28,5% em 2020, na comparação com 2019, e o brasileiro viu sua renda encolher, a dúvida é se a indústria automotiva nacional, que sempre recebeu incentivos do governo, terá fôlego para se reestruturar nos próximos anos e integrar-se às mudanças que começam a acontecer nessa cadeia global. É um exercício de futurologia prever o que vai acontecer, mas os especialistas são unânimes em afirmar que o Brasil tem condições de encontrar seu papel nesse novo mundo porque tem protagonismo no setor. “Nossa frota de veículos está entre as cinco maiores do mundo. Temos um parque industrial importante, engenheiros capazes de desenvolver novas tecnologias e um grande mercado consumidor, que pode atrair novas montadoras para o país, como as chinesas. Há condições de produzir aqui e exportar”, acredita Ayres, da Roland Berger.

“A Volks já tem modelos de caminhões elétricos sendo utilizados em empresas como a Ambev, que já comprou 100 unidades e encomendou outras 1.500. E a Weg já está desenvolvendo tecnologia que permite a conversão de motores a combustão em elétricos”

Apesar da saída da Ford, há sinais positivos no horizonte. Em dezembro passado, a Volkswagen anunciou um novo ciclo de investimentos no país. Serão R$ 2 bilhões entre 2021 e 2025, e entre os focos da montadora alemã está a digitalização de produtos, eletrificação e desenvolvimento de caminhões e ônibus autônomos. A Volks já tem modelos de caminhões elétricos sendo utilizados em empresas como a Ambev, que já comprou 100 unidades e encomendou outras 1.500. Empresas que não eram ligadas ao setor automotivo veem na eletrificação uma nova oportunidade de negócios. A Weg, fabricante de motores elétricos, já está desenvolvendo tecnologia e produtos que permitem a conversão de veículos de motores a combustão em veículos elétricos.

Protótipo do Lucid Air, veículo elétrico que será lançado este ano nos Estados Unidos, pela Lucid Motors, concorrente da Tesla. Foto: David Paul Morris / Bloomberg / Getty Images
Protótipo do Lucid Air, veículo elétrico que será lançado este ano nos Estados Unidos, pela Lucid Motors, concorrente da Tesla. Foto: David Paul Morris / Bloomberg / Getty Images

Com reformas que melhorem o ambiente de negócios, como a tributária, o Brasil pode se tornar uma plataforma de exportações de veículos como o México. O custo de produzir um veículo no México é quase 50% menor do que no Brasil, por exemplo, porque a carga tributária do país é mais leve que a brasileira. O país é mais aberto comercialmente e exporta mais de 60% de sua produção de veículos para os americanos. No Brasil, o problema de sempre: o custo de produzir é alto, o que afeta sua competitividade. Se esse problema secular fosse mitigado com as reformas que estão na fila, o futuro não estaria tão distante assim de nós — e o país poderia se tornar até mesmo um “hub” de exportação para toda a América do Sul e também para a África. Afinal, não custa sonhar.

O QUE VOCÊ VAI LER EM ÉPOCA DESTA SEMANA

PERSONAGEM DA SEMANA
ARTHUR LIRA
Com fama de cumpridor de promessas e feroz contra os inimigos, deputado derrota Rodrigo Maia, assume a presidência da Câmara e estabelece o poder para o governo no Parlamento

BATEU O SINAL
HORA DA AULA
Com vários estados permitindo encontros presenciais em escolas privadas e públicas, o Brasil tem a chance de sair do grupo de países que estão dando vexame na área do ensino

UM PARTIDO PARA CHAMAR DE SEU
O ÚLTIMO SOLTEIRÃO
Após eleger aliados para comandar o Congresso, o presidente Jair Bolsonaro quer escolher uma nova legenda até março para começar a cimentar o caminho da reeleição

ANO NOVO, NOVA CEPA
FASE AMAZÔNICA
O que mudou no hospital municipal de São Paulo que concentra pacientes com suspeita de contaminação pela variante do coronavírus encontrada em Manaus

7 PERGUNTAS PARA…
NOAM CHOMSKY
Aos 93 anos recém-completados, o linguista, sociólogo e filósofo Noam Chomsky diz que o sistema liberal está na origem dos danos ambientais e que o maior ativismo da sociedade ainda não se mostrou eficiente para mudar esse jogo

SOB RODAS
UMA REVOLUÇÃO SE APROXIMA
No mundo, a GM acelera planos de ter uma frota limpa, o que pode antecipar a estratégia de suas concorrentes sobre a fabricação de motores híbridos. No Brasil, os entraves para a guinada são tecnológicos e tributários

CONTOS DE KOLIMÁ
CAMARADA NAVALNY
Quem é o advogado ativista que usa as redes sociais para incomodar o “czar” russo Vladimir Putin e a oligarquia do Kremlin

CONCORDAMOS EM DISCORDAR
MARCELO GOMES × DANIEL CARA
O pesquisador da Fiocruz e o professor da Faculdade de Educação da USP divergem sobre a prioridade dada a professores na campanha de vacinação contra a Covid-19

VIVI PARA CONTAR
“NÓS QUERÍAMOS FAZER O CERTO”
Oficial de justiça de 33 anos conta como ajudou a encontrar e prender o assassino de sua irmã, vítima de feminicídio em 2006

DIÁRIO DA RESISTÊNCIA
O SOBREVIVENTE CENTENÁRIO
Em meio ao vazio deixado pela crise no centro do Rio de Janeiro, o café Gaúcho, reduto dos modernistas cariocas da primeira metade do século XX, segue firme e forte

PESADELO NA FLORESTA
VISTA CHINESA
Em trecho de novo romance lançado pela Todavia, Tatiana Salem Levy narra a história de um estupro e o difícil processo de racionalização

Colunistas

Guilherme Amado
A íntegra dos relatórios para“defender FB”

Monica de Bolle
O teorema do economista infinito

Helio Gurovitz
O mea-culpa de um republicano arrependido

Allan Sieber

Larry Rohter
Com Biden, os EUA não devem pressionar o Brasil

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here