Em 2017, a Chery era apenas mais uma marca chinesa prestes a encerrar suas atividades no Brasil. Estava em 24º lugar no ranking de vendas. Três anos depois de inaugurar sua primeira fábrica fora da China, em Jacareí (SP), com capacidade para 50 mil veículos/ano, a Chery não tinha produtos confiáveis, não contava com uma grande rede e não tinha capacidade para enfrentar a crise econômica.
Foi aí que entrou em cena o empresário Carlos Alberto de Oliveira Andrade, conhecido como Caoa. Com investimento inicial de R$ 2 bilhões, Caoa obteve 50% da montadora chinesa e criou a Caoa Chery. A partir daí, passou a fazer o que sabe: criar marcas de carros e vendê-los com forte apelo comercial.
Quando a operação começou, a empresa tinha apenas o pequeno QQ e o SUV Tiggo 2, uma evolução do Tiggo original. Já em seu primeiro Salão do Automóvel, em 2018, a novata Caoa Chery mostrou suas intenções e apresentou três SUVs: Tiggo 2 (de entrada), Tiggo 5X (compacto com visual aventureiro) e Tiggo 7 (médio). Além desses, exibiu um carro elétrico urbano baseado no QQ (EQ1) e um sedã compacto elétrico (Arrizo 5e).
De lá para cá, a empresa desistiu do QQ (que não dava lucro), lançou novos carros e dividiu as operações de produção local: em Jacareí ficaram os sedãs Arrizo 5 e Arrizo 6 (concorrente do Toyota Corolla) e o Tiggo 2. Em Anápolis (GO), ficaram os SUVs Tiggo 5X, Tiggo 7 e Tiggo 8 (um utilitário grande para sete pessoas).
Recentemente, o Grupo Caoa investiu mais R$ 1,5 bilhão na fábrica de Anápolis para expansão da marca Caoa Chery. Os carros chineses são fabricados na mesma unidade industrial de onde saem os modelos Hyundai da Caoa Montadora: os SUVs ix35 e Tucson e os caminhões HR e HD80. A fábrica começou a operar em dois turnos.
Os resultados já apareceram. Hoje, a Caoa Chery está em 11º lugar em vendas. E tudo indica que tem condições de, nos próximos dois ou três anos, melhorar sua posição. Hoje, o mercado brasileiro é liderado, nessa ordem, por Fiat, Volkswagen e Chevrolet.
O próprio Caoa em pessoa está acostumado a tirar leite de pedra quando se trata de automóveis. Sua marca ficou conhecida como concessionária Ford. Com 10 lojas, é o maior distribuidor da montadora americana na América Latina. Por isso, não deixa de ser irônico que agora, com a desistência da Ford de fabricar carros no Brasil, ela pode ser ultrapassada justamente pela marca criada por seu maior distribuidor.
A primeira experiência de Caoa como fabricante foi nos anos 1990, como representante da Renault. Nessa época, enfrentou a má vontade do consumidor brasileiro com carros franceses. Quando a Renault decidiu assumir a operação no Brasil, Caoa ficou sem marca.
Na época, ele quis comprar a representação da Mitsubishi dos empresários Eduardo de Souza Ramos e Paulo Ferraz, mas não conseguiu. Então decidiu assumir a coreana Hyundai, que tinha péssima imagem depois de fracassar nas mãos do Grupo Garavelo.
Por sorte, os carros coreanos haviam melhorado e um modelo em particular ficou muito bom: o SUV compacto Tucson. Nas mãos da Caoa, o Tucson se tornou um dos modelos mais desejados do Brasil. Em 2007, o Hyundai Tucson só perdeu em vendas para o Ford EcoSport e o Mitsubishi Pajero.
Num período de cinco anos, o Tucson vendeu cerca de 115 mil unidades. Ter um Tucson era ter um SUV barato e confiável. Os anúncios da Caoa dominavam as primeiras páginas dos grandes jornais e as revistas semanais de informação geral, além da televisão.
Em poucos anos, a Hyundai se transformou de uma marca sem credibilidade, ela passou a ser uma das mais desejadas. Quando os coreanos chegaram para produzir o HB20, o trabalho duro já estava feito. Hoje, a Hyundai ocupa o quarto lugar no ranking e tem 9,4% de participação no mercado brasileiro.
A mesma estratégia está sendo adotada agora, com a família Tiggo. Mesmo num cenário de incertezas, a Caoa Chery fechou com a TV Globo um contrato inédito de patrocínio que prevê mais de duas mil inserções na grade de programação até 2023. Segundo o Ibope Monitor, a Caoa Chery foi a montadora que mais apostou em publicidade em 2020, com um investimento 43% superior ao da segunda colocada no ranking. O valor não foi divulgado.
Assim como ocorria com os carros da Hyundai, os carros da Caoa Chery são apresentados sem nenhum pudor de parecer exagerado. O comprador de um Tiggo 8, por exemplo, não está comprando apenas um SUV de sete lugares, mas sim “a oitava maravilha do mundo”. O Tiggo 2 é vendido como “a maior concentração de qualidade e tecnologia por centímetro cúbico”.
Todas as decisões da Caoa Chery são tomadas em conjunto entre os profissionais brasileiros e chineses. As áreas de engenharia, marketing e pós-vendas, que são as mais importantes (mas não só elas), possuem executivos chineses e brasileiros trabalhando em parceria.
Assim, a Chery entra com seu know-how em tecnologia e inovação, enquanto a Caoa participa com sua experiência em vendas e atendimento na rede. Carlos Alberto de Oliveira Andrade é o Chairman e participa ativamente de todas as decisões. Ele tem dois homens-fortes ao seu lado: Mauro Correia, presidente da Caoa, e Marcio Alfonso, CEO da Caoa Chery.
A maior aposta da marca é na família Tiggo. Os modelos Tiggo 7 e Tiggo 8 já têm padrão semelhante ou até superior ao de seus concorrentes no mercado. O Tiggo 2, que é o modelo mais defasado tecnicamente, logo ganhará um facelift, mas não vai sair de linha. O modelo evoluído, já visto na China como Tiggo 3X, ficará posicionado acima dele e abaixo do Tiggo 5X. Será o quinto SUV da marca.
O Tiggo 5X também será atualizado. Somente para este ano, seis lançamentos estão previstos, entre atualização de portfólio e novos produtos. A rede também está em crescimento. Começou com 25 concessionárias em 2017, tem atualmente 115 e deve chegar a 150 lojas até o final deste ano.
Apesar de tudo isso, passar do 11º para o 10º lugar, ocupado pela Ford, e entrar numa hipotética primeira divisão no campeonato das marcas de carro, não será fácil. A Caoa Chery pretende vender 34 mil veículos e atingir uma participação de 1,5% (começou com 0,17% e terminou o ano passado com 1,05%). Na China, a Chery vendeu 500.398 carros em 2020. Cresceu 10,9% em relação ao ano anterior e tem 2,54% de participação de mercado.
No Brasil, até 25 de março, a Caoa Chery havia emplacado 1.842 unidades no mês. É um número um pouco menor do que o obtido pela picape Ford Ranger (1.893 unidades). Mesmo considerando que, daqui a algum tempo, a Ford não terá as 1.498 vendas obtidas com os modelos Ka e EcoSport, outros modelos e versões chegarão ao mercado. Haverá, certamente, uma disputa entre as duas marcas, certamente.
No momento, os carros mais vendidos da Caoa Chery são o Tiggo 5X com 2.219 vendas no ano e o Tiggo 8 com 1.148. A chegada do provável Tiggo 3X (o nome ainda não está confirmado) deve aumentar as vendas da família de SUVs na faixa até R$ 100 mil.
Mas, enquanto a Caoa Chery vislumbra o 10º lugar para daqui a dois anos ou três anos, o empresário Caoa já está iniciando uma nova empreitada: ainda este ano uma outra marca chinesa será lançada pelo grupo. Trata-se da Exeed, que faz SUVs premium e se tornou uma aposta da Chery para tentar ampliar seus negócios. Mas aí, já é outra história.
Sergio Quintanilha é editor-chefe do site Guia do Carro. Trabalhou nas revistas Quatro Rodas, Carro, Carro Hoje, Motor Quatro e Motor Show. Atua na cobertura do setor automotivo desde 1989 e atualmente desenvolve uma tese de doutorado na USP sobre as transformações no significado do automóvel. Twitter: @QuintaSergio