A receita de sucesso e longevidade da Aston Martin contém excelência e singularidade, mas, para a aflição de seus admiradores, ela leva também gotas de inconsistência. Fundada em 1913, a montadora britânica, notabilizada pela grade frontal de seus veículos, venceu a mítica 24 Horas de Le Mans em 1959 e ingressou na Fórmula 1 no mesmo ano, apenas para desistir na segunda temporada. Quando, em 1964, o modelo DB-5 se tornou mundialmente conhecido como o carro de James Bond em 007 contra Goldfinger, formou-se um elo entre a marca e o espião que deveria durar para sempre, mas os carros da Aston Martin desapareceram dos filmes posteriores estrelados por Roger Moore. Agora, passadas décadas de sucessivas trocas de comando, uma nova era de oportunidades se apresenta para a centenária fabricante inglesa, com novidades anunciadas em todas as frentes, do retorno à F1, já em andamento, ao lançamento de um supercarro híbrido.
Para entender a Aston Martin e o que precisou ser feito para que ela escapasse da sina de ser apenas uma sombra de gigantes como a italiana Ferrari, é preciso retroceder a 1987, ano em que a Ford assumiu o controle acionário da companhia. A invasão americana, inicialmente vista como sacrilégio, acabou sacudindo a Aston Martin e promovendo o lançamento de modelos de sucesso, incluindo o DBS v12, que seria apresentado em 2006 no filme Cassino Royale, tendo o então desconhecido Daniel Craig interpretando Bond com o vigor que havia sido perdido tanto pelo personagem quanto pela fabricante de carros.
Depois da era Ford, a empresa trocou mais algumas vezes de mãos até chegar, em 2020, à direção segura de Lawrence Stroll, bilionário canadense que assumiu o conselho de administração e que acha fundamental ter a marca de volta à Fórmula 1. A Aston Martin reestreou como escuderia na temporada deste ano e tem como pilotos o campeão Sebastian Vettel e o jovem Lance Stroll, filho de Lawrence. Competir em uma categoria do automobilismo, entretanto, é apenas parte da estratégia de marketing, que também envolve um filme cuja estreia foi adiada várias vezes devido à pandemia. Em Sem Tempo para Morrer, que finalmente chega aos cinemas no fim de setembro, Bond vai interagir com nada menos do que quatro modelos de Aston Martin, incluindo o clássico DB-5 e o protótipo do Valhalla, o supercarro batizado com o nome do paraíso da mitologia nórdica.
O Valhalla é produto das pistas de corrida, mas foi domado para as ruas. Sua frente não tem o visual marcante dos modelos DB, mas a grade, ainda que escamoteada, está lá. O que diferencia um carro esportivo de um supercarro é essencialmente potência e velocidade, e o Valhalla é pródigo nos dois quesitos. Seu motor a gasolina de 750 cavalos (algo como dez vezes a potência de um veículo popular) ganha impulso extra com dois motores elétricos que adicionam 200 cavalos de força, o que faz com que esse Aston Martin chegue a 100 quilômetros por hora em apenas 2,5 segundos e ultrapasse os 330 quilômetros por hora, desafiando assim máquinas italianas e alemãs. Como no mercado automotivo são os feitos que fazem a fama, os projetistas almejam bater o recorde de velocidade do circuito de Nürburgring, na Alemanha, onde a melhor marca pertence a um Porsche. Depois de dar as caras no filme de Bond, o Valhalla entrará em produção em 2022 para ser entregue no ano seguinte. A Aston Martin não divulgou o preço, mas especialistas estimam 5 milhões de reais no câmbio atual.
Para compradores com fôlego para tanto (e um pouco mais, considerando os impostos de importação), a Aston Martin também está de volta ao Brasil, com loja a ser inaugurada em São Paulo em novembro. Afastada do país desde 2017, a marca retorna pela concessionária UK Motors, resultado de uma joint venture de duas empresas conhecidas no mercado de veículos de luxo, a Eurobike e a Stuttgart. VEJA conversou com seus executivos, que também acham precipitado pôr preço no Valhalla agora, mas que estimam vender de vinte a 25 unidades por ano dos demais modelos, assim que a loja for inaugurada. A empolgação local é reflexo direto do entusiasmo dos europeus, que esperam, até 2025, dobrar as vendas totais, hoje na faixa de 5 000 unidades ao ano. Para alcançar esse patamar, a empresa conta com a transferência de tecnologia da Mercedes, que fornecerá o motor V8 do Valhalla e o sistema para a fabricação dos futuros veículos elétricos. Em troca, a Mercedes ganhará mais participação nas ações da Aston Martin. É de se pensar o que Bond acharia de tanta engenharia alemã embarcada em algumas das máquinas mais velozes e icônicas do Reino Unido.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750