Impactada frontalmente pelo isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19, o setor automobilístico no Brasil traduz com precisão o efeito ponto morto em parte do setor industrial, que ainda faz as contas para descobrir o tamanho do rombo no motor econômico. Números da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostram essa via crucis vivida pelas montadoras desde que a quarentena na maior parte dos estados levou o mercado a um dos menores índices da história: em abril, foram produzidos apenas 946 veículos, impressionante queda de 99,4% em relação aos 156.498 carros montados em março.
Líder na categoria premium, a alemã BMW acompanhou o cortejo no primeiro mês após o início da quarentena. Em abril, foram licenciadas nos departamentos de trânsito 293 unidades da marca de luxo, queda de 63% sobre março, quando foram emplacados 794 carros da montadora. Nos quatro primeiros meses de 2020, foram 2.797, contra 3.575, o que mostra o enorme efeito da queda de março. Na primeira semana de maio, foram vendidos 168 veículos, que ainda assim colocaram a companhia com liderança mais folgada no segmento, na faixa de 40% de participação.
Para a montadora, que vendeu 13.153 veículos no ano passado, o que representou 25% da participação do segmento de carros de luxo no País, a saída para a retomada pode estar na tela do computador. O CEO da BMW no Brasil, Aksel Krieger, afirma que o empenho é para que, até o fim do ano, todo o processo de compra possa ser concretizado até de um smartphone, sem que o consumidor ponha o pé para fora de casa. A não ser para receber o automóvel na porta. Sem tomar a decisão a partir de um test-drive ou daquele cheiro de carro novo como convencimento para a batida de martelo. “Hoje conseguimos chegar a 80% de todo o processo de venda por meio virtual”, diz o executivo. “O pagamento e a retirada ainda precisam ser de forma presencial. Queremos que todas essas etapas sejam feitas a partir da plataforma.”
A estratégia de digitalização chega até ao segmento de classificados. A BMW iniciou parceria inédita com o Mercado Livre, maior plataforma de e-commerce da América Latina, para venda de veículos on-line a partir da loja oficial da companhia no portal, a primeira no segmento premium. Numa etapa inicial, serão disponibilizados cerca de 300 modelos – seminovos e usados – das marcas BMW e Mini da rede de concessionárias. Um terço das 48 lojas que vendem os produtos da montadora alemã estão com showroom abertos no Brasil.
INSTAGRAM O lançamento do 330e M Sport, modelo híbrido (gasolina e elétrico) produzido em Munique, na Alemanha, foi realizado na segunda-feira 18 pela rede no Instagram da companhia. Foi a primeira vez na história. Com o provável aumento na receita a partir dos novos canais de venda, a BMW já executa o plano de retomada gradual das atividades. Com 1 mil funcionários no Brasil, a empresa adotou home office para a área administrativa e, no dia 4 de maio, retomou as atividades da planta de Araquari, em Santa Catarina, onde atuam cerca de 600 trabalhadores. O fato é que o cenário no Sul, em termos de saúde, é bem diferente do vivido na região Norte. A fábrica de Manaus voltou na segunda-feira 18, ainda em momento de aumentos de casos no estado. Amazonas registrou, até sexta-feira 15, 18.396 casos da Covid-19, o quarto estado com mais notificações no Brasil, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará. São mais de 30 medidas de segurança implementadas nesse período para proteger os funcionários, incluindo equipamentos de proteção individual e uso de álcool em gel. No período de fechamento, a montadora realizou, em parceria com Senai, a manutenção de respiradores artificiais.
A companhia ainda estuda a adoção da Medida Provisória 936, que permite a suspensão do contrato de trabalho por 60 dias e redução de jornada e salário. O presidente da Anfavea, Luiz Carlos Moraes, defende o uso intensivo de tecnologia pelas montadoras para ampliar as vendas. “Temos percebido grande procura por automóveis em plataformas digitais. Claro que há um custo, mas é um caminho que deve ser adotado pelo setor”, garante Moraes. “A tendência já existia e está sendo antecipado a partir da pandemia”, diz o executivo, que afirmou que a associação pretende realizar fórum digital para debater os caminhos dessas novas ferramentas.
Para o presidente da montadora, o ritmo moroso do governo federal em apresentar soluções para a economia, com foco na situação de cada segmento, seja mais ou menos atingido pela pandemia, inquieta o setor industrial. “Entendemos as dificuldades trazidas pelo ineditismo, mas precisamos de decisões mais rápidas. O Brasil precisa urgentemente dar andamento a temas considerados de maior criticidade, como a questão da liquidez das empresas durante esta fase”, diz o CEO. O recado de Aksel Kriegel tem a direção certeira do Palácio do Planalto. “Como executivo brasileiro, não gostaria de ver nosso País atrasado.”
TRÁFEGO DIGITAL CRESCE NAS CONCESSIONÁRIAS
Vendas totalmente on-line de veículos é alternativa para o setor estrangulado com a crise na saúde
O volume de vendas de veículos no País voltou ao passado. Regrediu quase 30 anos. De janeiro a abril deste ano, foram comercializadas 613.793 unidades. O mesmo patamar de 1992. A maioria das lojas e revendas oficiais das marcas está fechada por todo o Brasil em decorrência da pandemia de coronavírus. Para minimizar os efeitos negativos, o setor tem agir no presente e colocar em prática agora soluções que estavam planejadas para o futuro. Entre as alternativas do mercado estão as concessionárias digitais, em que todo o processo de venda, desde a captação dos clientes até o pagamento e a entrega, é feito totalmente on-line.
A Linx, empresa brasileira especializada em tecnologia para o varejo, lançou no mercado uma solução que promete a consumidor e vendedor efetivarem a transação de compra e venda de automóveis sem sair de casa. “As lojas que mais cedo se prepararem para essa configuração poderão ter mais chances de se recolocar e liderar a capitalização das retomadas. Vale para passar pela atual crise e também para o pós-pandemia”, afirma Renato Lass, diretor de novos negócios do segmento automotivo na Linx.
A plataforma tecnológica é baseada em quatro pilares de sustentação. Com utilização de Inteligência Artificial, como no uso de chatbots para atração de potenciais clientes e verificação de tendência de compras. Muitos serviços já estavam em funcionamento, mas eram usados separadamente. Houve fusão e aperfeiçoamento de retaguarda para disponibilizar a solução de forma completa.
QUATRO PILARES O primeiro pilar é o de sistemas e processos internos, de diferentes áreas das concessionárias, que na maioria das vezes não conversam entre si e possuem variadas bases de dados. Ao integrar esses setores e informações, o foco na experiência do cliente fica em primeiro plano e as questões burocráticas são superadas. A segunda coluna da solução é a da venda. Inclui, por exemplo, ferramenta de pré-avaliação do veículo usado na troca, simulação de financiamento, test drive delivery, formalização do contrato e pagamentos de forma 100% digital e entrega em casa, retirando o usado na troca, inclusive. O terceiro pilar está no pós-venda e serviços, com oferta de catálogo, possibilidade de cotações, agendamento e outras demandas totalmente on-line. E a quarta solução da ferramenta é mais voltada ao humano do que aos aparatos tecnológicos. Envolve a mudança de mentalidade dos líderes das concessionárias e seus funcionários.
“A venda de veículos é um segmentos em que não se acreditava ser possível escalar compras on-line”, afirma Lass. Porém, o consumidor automotivo vem manifestando seu desejo de comprar e viver essa experiência de forma on-line. “No mercado de vendas automotivas, essa aceleração digital veio por necessidade e as pessoas estão gostando.”
O executivo cita o estudo da Cox Automotive de 2019 indicando, já antes da crise, que os consumidores americanos buscavam maior conveniência junto às concessionárias. Entre os principais desejos estavam a retirada e entrada do veículo para manutenção efeitas de casa. Outro levantamento apontado por Lass é o da GP Strategies, mostrando que 95% dos consumidores norte-americanos se deslocam às concessionárias em algum momento da jornada de compra de um carro não porque querem, mas por não possuírem meios para uma experiência diferente. Esses comportamentos também estão presentes no perfil do brasileiro, diz Lass. “Ninguém vai a concessionárias de carros como vai a restaurantes. É um ambiente de baixa visitação.”
As lojas oficiais da Harley-Davidson no Brasil são um exemplo de transformação. Não com a ferramenta da Linx. A centenária marca de grandes e potentes motocicletas potencializou a comercialização por canais digitais, como site, redes sociais, WhatsApp e por telefone. Cada revenda adotou um novo caminho para facilitar o acesso dos clientes de maneira rápida e prática. “Há concessionárias com serviço de entrega de motos, inclusive, e Test Ride a domicílio”, informou a empresa, por nota.
SETOR EM RISCO Alternativas para um setor estrangulado pela crise da Covid-19. As vendas de motos registraram queda de 69,74% no primeiro quadrimestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, segundo dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). Automóveis e comerciais leves tiveram retração de 27,13%. Já os financiamentos de veículos novos e usados caíram 56% em abril. Das 7,3 mil concessionárias no País, 2,2 mil podem fechar definitivamente ainda em maio, de acordo com a Fenabrave. “Não há mais desculpas nem saídas para evitar a transformação digital. A mudança nas concessionárias passará por quebras de paradigmas, mas fará parte do novo normal”, afirma Lass. (Beto SILVA)