A exemplo dos Pachecos que conhecemos – eu, pessoalmente, tenho um irmão assim – o personagem literário não diz uma frase, até porque nunca leu um livro, e galga os mais prestigiados postos sem jamais propor uma resolução. É a sumidade do silêncio, o beócio que se passa por crânio. 

Pois bem, há Pachecos de todos os matizes, ditando a mais absurda “cátedra”, quando os carros elétricos entram em pauta.

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Dos que – como meu irmão – acham que a recarga das baterias é feita como em um smartphone, por uma tomada de energia comum, aos que enxergam uma economia fantástica na qual só a amortização do investimento levaria 400 mil quilômetros.

Não sabem que, hoje, o Brasil não tem sequer a infraestrutura de que Nova York dispunha, para os elétricos no início do século passado – de acordo com o “Washington Post, em 1901, os veículos elétricos tinham uma participação de 38% na frota nova-iorquina, contra 22% dos movidos a gasolina. 

Não sabem que a maior economia do mundo vive uma verdadeira corrida para construir a nova rede nacional de abastecimento, que dará as condições indispensáveis para a transição energética. 

“Como a maioria das pessoas, eu pensava que, quando tivesse um carro elétrico, recarregaria suas baterias durante a noite, na garagem de casa, ou no trabalho, durante o dia, aproveitando uma tomada de força qualquer”, disse Leslie J. Allen, editora do suplemento Charging Ahead – the race to built U. S. EV infrastructure.

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Nem todas as casas estarão preparadas para recarga doméstica de carros elétricos. O que fazer?

Não demorou muito para a jornalista ver que estava enganada. “Existem os que não têm garagem em casa e aqueles que, estando longe de casa, precisarão acessar uma fonte para recarga. Vi que tanto uma rodovia interestadual, quanto em uma estrada secundária que termina em uma pequena cidade, têm que oferecer uma solução de mobilidade”, acrescentou.

Como o leitor pode ver, Leslie é muito diferente dos Pachecos com quem cruzamos diariamente. Ela tem uma grande preocupação, mesmo que os números norte-americanos não suscitem nenhum tipo de temor. 

Afinal, hoje já existem cerca de 105 mil carregadores públicos espalhados pelos Estados Unidos, segundo o Departamento de Energia Alternativa aos Combustíveis (DEAF), e uma das promessas de campanha do presidente Joe Biden foi a ampliação da rede para 500 mil pontos. 

“O problema é que, com tantas montadoras focando seu planejamento e seus lançamentos nos modelos elétricos, necessitamos de uma infraestrutura muito maior que a atual. E os elétricos estão chegando, independentemente de essa rede estar pronta ou não”, pontua a editora.

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Infraestrutura de pontos de recarga públicos precisará ser aprimorada

Para o meu irmão, por exemplo, os carros elétricos são coisa de rico e os ricos não têm com o que se preocupar – afinal, o dinheiro compra tudo. É uma visão antagônica ao projeto de eletrificação que a Volkswagen acaba de colocar em prática, numa parceria com o Governo da Grécia: um laboratório de testes a céu aberto em Astypalea, uma ilha no sul do Mar Egeu. 

“Definir o modelo de infraestrutura para acomodar o crescimento dos elétricos é um grande desafio, mas que vamos colocar em prática, nos próximos cinco anos, em pequena escala”, afirmou o diretor-presidente (CEO) do Grupo VW, Herbert Diess, ao jornal Automotive News

“Usaremos uma área geográfica menor, onde vamos substituir 1.000 automóveis com motores a combustão, de uma frota total de 1.500 veículos, por modelos elétricos”, acrescentou Diess. 

Além de criar novos serviços de compartilhamento veicular, que possam, inclusive, substituir o transporte coletivo em ônibus convencionais, a parceria vai construir um parque solar e um sistema de armazenamento de energia, com o qual espera cobrir 80% da demanda de eletricidade na ilha até 2026. 

Já na Alemanha, a Audi (marca do Grupo VW) confirmou que vai testar ‘hubs’ móveis de alta potência para recarga pública e picos de demanda. O sistema será construído em containers equipados com baterias de íon de lítio e 2,45 mega-watt/hora (Mwh) de capacidade, além de painéis fotovoltaicos com conector padrão de 400 volts. 

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Energia será suficiente?

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Carros elétricos estão ganhando baterias com capacidade e velocidade de recarga cada vez maiores

De volta aos Estados Unidos, estima-se que os veículos elétricos representem 3% da frota atualmente, mas essa participação pode chegar a algo entre 15% e 35% até 2030, segundo estimativa da consultoria McKinsey & Co. 

“Estamos evoluindo para uma ação real e uma questão importante é: nós teremos energia suficiente para abastecer a infraestrutura de recarga que estamos criando?”, pergunta a diretora executiva da Comissão norte-americana sobre o Futuro da Mobilidade, Alisyn Malek, núcleo criado em parceria pela Allianz, Ford, FedEx, Goodyear, Hyundai, Valeo e pela Wallenius Wilhelmseen, entre outras empresas. 

“O Chevrolet Volt foi lançado há dez anos e ainda estamos longe de oferecer a mesma conveniência para os donos de automóveis convencionais, que fazem ao menos um grande deslocamento – em termos de distância – a cada 20 saídas”, avalia o ex-diretor de híbridos plug-in da General Motors, Tony Posawatz. 

“Não vejo ninguém trabalhando em soluções para questões inevitáveis como o número de estações que uma residência terá que ter quando os três automóveis da casa forem elétricos”.

Já no Brasil, não existe nenhum tipo de planejamento no sentido da eletrificação e, para além dos Pachecos de plantão com suas soluções “de goela”, o mais provável é que os postos de combustíveis atuais sejam a base para a implantação da nova rede de recarga.

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Ocorre que até mesmo isso vem sendo questionado no exterior. “A simples remodelagem dos postos atuais não é garantia de nada. Os carregadores terão de ser alocados em novos locais e isso será até mais importante do que o número de pontos de recarga”, garante o responsável pelo laboratório de sistemas de mobilidade do Estado de Idaho, que responde pelo sugestivo nome de John Smart. 

“O projeto do passado, com postos nas saídas das cidades, é ultrapassado e a questão, agora, é compatibilizar o valor que o tempo tem para as pessoas, com a velocidade de recarga das estações. Porque recarregar as baterias em casa, enquanto o motorista dorme, é simples e cômodo, tanto que hoje 80% dos proprietários de elétricos o fazem. Mas e a recarga em rota?”, pergunta Smart.

Para ele, a questão não é fazer dos modelos elétricos tão práticos como os equipados com motores a combustão, mas fazê-los “ainda mais práticos”. Nessa corrida, lugares como supermercados, cinemas/teatros e igrejas são “os melhores pontos” para instalação dos carregadores públicos.

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Nos EUA, grandes lojas apostam em postos de recarga como chamariz para clientes que são donos de elétricos

A rede de lojas de departamento Macy’s concorda com Smart, tanto que desde 2014, quando instalou 100 estações de recarga em 40 endereços diferentes, registrou 41% de aumento na demanda pelo serviço que ela chama de “shop and charge”, e com um resultado muito interessante.

A rede identificou que seus clientes não compram apenas durante o intervalo de tempo necessário para a recarga das baterias de seus veículos, mas que seu tempo de permanência nas lojas e seu ticket médio de consumo também aumentaram.

“Pesquisamos 8.000 donos dos modelos Leaf, da Nissan, e Volt, da Chevrolet, e descobrimos que eles preferem usar carregadores mais rápidos, externos, do que os que dispõem em suas próprias residências”, revelou Smart.

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Recarga 50 vezes mais rápida

Aqui vem outro fator com o qual os Pachecos não contam: uma hora de recarga doméstica, usando uma fonte de 120 volts, representa em média 6,4 quilômetros de autonomia, enquanto apenas 30 minutos conectado a um recarregador externo de alta potência garante até 160 quilômetros de autonomia. 

Em termos de tempo, significa que a recarga em uma estação pública é até 50 vezes mais rápida – e, na terra do Tio Sam, tempo é dinheiro. 

“Não é à toa que 33% da pessoas que ouvimos, recentemente, afirmam que as limitações de recarga doméstica e no trabalho são o fator que desencoraja a compra de um modelo elétrico”, declarou o diretor sênior de pesquisas de varejo da J. D. Power, Stewart Stropp. 

“Precisaremos otimizar ambos os meios, mas está mais do que clara a necessidade urgente de instalação de estações públicas de recarga. Agora, a construção de toda esta infraestrutura, em um país extenso como os Estados Unidos, é um grande empreendimento e que leva muito tempo”, seguiu.

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Como os prédios comerciais vão se preparar para um futuro em que 100% dos carros ali estacionados são elétricos e precisarão ser carregados durante o expediente?

Antes que o Pacheco mais próximo venha falar que, “aqui no Brasil a realidade é outra e etc, etc, etc”, é importantíssimo chamar atenção para o fato de que, hoje, 24% dos norte-americanos usam carregadores de 120 volts, enquanto 25% usam carregadores de 240 volts em casa. 

“Agora, adivinhe: a grande insatisfação deste primeiro grupo se refere ao tempo de recarga das baterias de seus carros. E isso tem outras implicações, como o fato de este grupo, que reúne os mais insatisfeitos, também ter menor conhecimento da maneira como devem ser feitas as recargas e que sete em cada dez deles nunca se programam para fazê-la”, ilustra Stopp. 

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“Neste ponto, entendo que essa desídia e essa insatisfação podem ser revertidas em oportunidades para concessionários e empresas que instalam e oferecem serviços de recarga personalizados. Note que 17% dos consumidores relatam problemas logo na instalação da estação doméstica de recarga e, para as pessoas que moram em apartamentos, o setor ainda não criou uma solução prática, que dispense agendamentos e evite filas nas estações”, explica.

São, realmente, questões que passam ao largo da realidade brasileira, onde as coisas têm um poder mágico de se ajeitarem na base do improviso – ou não. Para os realistas, seguem dados que mostram como não estamos sequer engatinhando, quando o assunto é infraestrutura de recarga para elétricos: 

A maior rede norte-americana, a ChargePoint, conta com mais de 24.900 estações, totalizando quase 45 mil pontos de recarga, enquanto a Testa possui mais de 4.500 estações, com quase 22 mil pontos de recarga – sendo que, destes, 10.600 pontos correspondem à versão Supercharger.

Empresas como a Electrify America, rede nacional que conta com mais de 600 estações públicas, oferecem dois anos de recarga parcial gratuita para os donos de modelos como Hyundai Ioniq 5 e Mercedes-Benz EQS – algo inimaginável em terras tupiniquins ou para a sapiência dos Pachecos. 

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Pontos públicos e múltiplos de recarga rápida, como este em Campinas (SP), ainda são raridade no Brasil

Bem longe dos Estados Unidos, a chinesa BAIC Motor chamou atenção quando, em 2016, instalou dez estações para troca completa de baterias em Pequim. Inicialmente, o projeto atendia uma empresa de táxi chinesa, mas a coisa deu certo e, hoje, são 617 unidades espalhadas por todo o país. 

Cada estação custa 3 milhões de yuans (o equivalente a R$ 2,42 milhões) e, só no ano passado, uma empresa estatal da Província de Anhui (leste da China) investiu o equivalente a mais de R$ 5,6 bilhões para criar sua rede do tipo, em Hefei – capital da província, uma cidade com mais de sete milhões de habitantes. 

Outra cidade no sudoeste da China, Chongqing (cuja região administrativa tem uma população de mais de 30 milhões de habitantes), também iniciou seu projeto infraestrutural que vai contemplar 39 estações, até setembro deste ano, chegando a 200 até 2023.

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Inércia e previsão de corte

São números impressionantes, que dão uma visão cristalina dos esforços governamentais chineses e norte-americanos para a transição do modelo atual rumo a uma frota de veículos 100% elétricos. 

Apenas para o leitor ter uma ideia da inércia em que pé as coisas se encontram, no Brasil, os Estados Unidos vão aplicar o equivalente a R$ 39,2 bilhões (US$ 7,5 bilhões) só em uma rede rural para recarga.

Enquanto isso, no sentido oposto ao da eletrificação, o presidente da Volkswagen para a América Latina, Pablo Di Si, contrapõe as ações mundiais do grupo afirmando que o país precisa criar “sua alternativa” aos carros elétricos, apostando nos biocombustíveis. 

Ou seja, a indústria nacional deixa patente que busca uma outra possibilidade, um outro caminho, uma outra escolha à eletrificação. E mesmo que fóruns e seminários discutam o assunto, dando a impressão de que há – o que é fantasia – um projeto em desenvolvimento, enfrentamos uma questão momentaneamente intransponível:

Trata-se do desastre que a crise hídrica iminente vai impor ao setor energético brasileiro, que já informou os grandes consumidores (leia-se a indústria), por meio de suas distribuidoras, sobre há possibilidade de corte no fornecimento em tempo real a partir do final de novembro.

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Além dos postos escassos, Brasil vive crise no próprio suprimento da energia elétrica para sua população

“As consequências no suprimento de energia elétrica para as demandas mais elevadas são evidentes, e esta situação é resultado do que ocorreu no passado, de decisões de planejamento que fizeram com que o sistema chegasse no ponto em que se encontra”, disse o ex-diretor de Itaipu e ex-presidente da Eletrobas, Altino Ventura, ao Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), nesta semana.

“As demandas elevadas ocorrem no segundo semestre e a situação não é tranquila. Se não tivermos racionamento, atingiremos níveis de 10% nos reservatórios antes de novembro”, previu o especialista. 

Ventura aponta que a elevação das tarifas, o aumento das contas de energia elétrica, já funciona como uma espécie de racionamento. “A pessoa tem um ar-condicionado em casa, mas não o utiliza, porque tem medo de não conseguir pagar a conta”, ilustra. 

Hoje, o boleto da companhia de eletricidade já representa 10% dos gastos das famílias de classes baixa e média, e tudo isso pode inclusive fazer a economia prometida pelos elétricos no uso de eletricidade ser, na ponta do lápis, rapidamente convertida em prejuízo duplo. 

Além da aquisição de um modelo elétrico ser um investimento altíssimo (que demora para ser amortizado, quando se amortiza), é fundamental frisar que, hoje, se o custo do quilowatt/hora (kWh) ultrapassar os R$ 1,70, o valor por km rodado em um elétrico passa a ser maior do que o de seu equivalente equipado com motor a combustão.

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Para chegar a essa conta, comparamos o custo por km rodado de um Volvo XC40 2.0 T5 com um XC40 Recharge: R$ 0,63 por km rodado para o SUV 100% a combustão e R$ 0,28 para o irmão 100% elétrico, segundo a própria fabricante. 

Em alguns estados brasileiros, o custo atual do kWh em bandeira vermelha já se aproxima de R$ 0,70 (isso sem contar os quase 50% de taxas e impostos embutidos…).

Como até um Pacheco pode imaginar, nosso atraso em relação à transição da matriz energética automotiva é um grande perigo para a indústria nacional, que, ficando para trás, vai minguar até a capitulação completa.

Ao mesmo tempo, pode ser uma má surpresa para quem já quebrou o cofrinho e comprou um modelo elétrico, sendo pego de surpresa pela inflação que poderá fazê-lo pagar mais caro pelo quilômetro rodado. São as contradições brasileiras elevadas à enésima potência.

Imagens: Shutterstock, Murilo Góes/Mobiauto e Renan Bandeira/Mobiauto

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