A indústria brasileira de veículos está observando os avanços dos países desenvolvidos na aposentadoria de veículos a combustão com um misto de preocupação e hesitação, diante de inúmeros pontos que precisam ser resolvidos antes que a eletrificação possa se massificar no país.

Questões que incluem desde falta de padronização de tomadas de recarga de baterias, ausência de fabricantes nacionais de componentes, queda da renda da população e até arranjos tributários que causam distorções competitivas entre montadoras precisam ser resolvidas para que a indústria local acelere em direção às novas tecnologias de motorização, veem especialistas.

Às interrogações se juntam o compasso de espera pelo momento eleitoral, já que as duas principais candidaturas presidenciais têm propostas pouco detalhadas para o setor automotivo e o que se sabe delas aponta para direções distintas.

A campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirma que vai propor uma reforma tributária “verde” geral, que empurre o setor produtivo para uma transformação ecológica, o que teria, eles argumentam, um reflexo no setor automotivo, com estímulo à transição elétrica.

Já no lado do atual governo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem prometido que, se ficar no cargo, promoverá a redução a zero do IPI —uma política horizontal, e não setorial, que acredita que vai incentivar a indústria nacional como um todo.

O Brasil tem uma frota circulante de cerca de 46 milhões de carros e todo esse volume por si só já garante demanda para uma indústria de autopeças que afirma estar preocupada com o ritmo das mudanças, mas ao mesmo tempo avalia que a transição no país será mais demorada do que nos mercados onde a tecnologia está desenvolvida, como Europa e China.

“Se não houver demanda suficiente por veículos elétricos ou híbridos, não haverá produção no país…ou se atinge uma determinada venda ou não vale a pena fazer fábrica”, disse Gábor János Deák, diretor de tecnologia do Sindipeças, entidade que representa 500 fabricantes nacionais e internacionais de autopeças.

As vendas de híbridos e elétricos têm saltado no país, mas ainda representam uma pequena parcela, pouco menos de 24 mil veículos, sobre o total de 1,3 milhão vendido no país de janeiro a agosto, segundo dados da associação de montadoras Anfavea.

Deák afirmou que, apesar do momento ser de “atenção” para a indústria de autopeças, o parque de veículos rodando no país atualmente é suficiente para “20 anos de produção” do setor de autopeças.

“Queremos colocar todos os fatos na mesa para definirmos qual a solução mais adequada para o país”, afirmou o executivo do Sindipeças, citando que os motores híbridos a etanol seriam uma resposta mais adequada para um país de dimensões continentais, sem infraestrutura e com mercado consumidor que não tem condições de bancar os preços de modelos totalmente elétricos sem subsídios.

Parte do setor automotivo no Brasil, por ora, está inclinado para a definição de mecanismos que permitam uma longa fase de transição em direção à eletrificação da frota do país, começando pelos híbridos flex, que são uma particularidade tupiniquim ao permitirem o uso de etanol e gasolina, além da bateria, para movimentar o veículo.

A aposta ganha evidência em meio a planos da indústria para envolver outros países na tecnologia do híbrido flex, como a Índia, para se evitar que o Brasil vire um nicho da indústria automotiva com seus motores “verdes” a combustão. “Eles (Índia) estão em 10% de etanol na gasolina…e podem progredir nisso”, disse Deák. No Brasil, o percentual de etanol anidro na gasolina é de 27%.

No Brasil, entre 16 grupos automotivos, apenas Toyota, desde 2019, e a sino-brasileira Caoa Chery, desde junho deste ano, montam carros híbridos flex, mas com os principais componentes, como motores elétricos e baterias, importados diante de ausência de fornecedores locais.

“Não dá para colocar o elétrico hoje no Brasil. Vai matar o motor a combustão, matar a concepção de motor-eixo-câmbio e vamos perder metade da cadeia produtiva”, disse Aroaldo Oliveira, diretor executivo de um dos maiores sindicatos de metalúrgicos do país, o da região paulista do ABC.

Cerca de 100 mil trabalhadores são empregados apenas por montadoras de veículos no país, afirma a Anfavea. Outras 243 mil pessoas trabalham para o setor de autopeças, de acordo com os dados do Sindipeças.

“No carro, a transição da combustão para o elétrico tem que ser mais longa que nos países desenvolvidos e por isso estamos fazendo debate sobre o híbrido a etanol para as pessoas terem acesso à compra e pensarmos na transformação da cadeia produtiva”, disse Oliveira.

MAIS PERGUNTAS QUE RESPOSTAS

Ao longo das últimas décadas, a aposta do Brasil nos motores flex foi referendada por planos de governo que incluíram o Inovar-Auto, dos anos dos governos petistas, e o Rota 2030, sancionado no governo Temer em 2018, que tinham entre as premissas oficiais fortalecer a produção local e melhorar a eficiência dos motores dos veículos, com redução de emissões.

Os planos efetivamente conseguiram proteger o mercado local e levar a reduções no consumo de combustível dos veículos, mas não trouxeram até agora capacidade de produção de componentes eletrônicos e baterias.

Também mantiveram a indústria local sem produtos capazes de atender com mais intensidade mercados além do sul-americano, para onde escoa a maioria de suas vendas externas.

“Marcos regulatórios são interessantes porque você tem previsão da regra do jogo, facilitando investimentos”, disse Milad Kalume, gerente de desenvolvimento de negócios, da consultoria automotiva Jato do Brasil.

“Mas o Brasil é seguidor de tecnologia. Tem muito pouco sendo desenvolvido aqui”, acrescentou.

Segundo os dados do Sindipeças, o déficit da balança comercial do setor no primeiro semestre cresceu 19,5% ante a primeira metade de 2021, para quase 6 bilhões de dólares. Entre os principais itens importados, os controladores eletrônicos para sistemas de veículos, por exemplo, tiveram alta de quase 42% no período.

“Ficamos parados e não conseguimos desenvolver de fato uma indústria de semicondutores e de componentes eletrônicos. Não desenvolvemos a tecnologia necessária”, afirmou Oliveira, do sindicato dos metalúrgicos do ABC.

Ele citou o “Plano Brasil Maior”, de 2011, em que o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje lidera as pesquisas para ocupar novamente ao posto, procurou incentivar uma indústria de componentes eletrônicos no país.

Agora, a equipe petista tem sinalizado horizontes mais amplos do que programas apenas para o setor automotivo, em si mesmo simbólico para o ex-presidente. Lula fez questão de iniciar oficialmente sua campanha, em agosto, com discurso na fábrica da Volkswagen no ABC, em São Paulo, região onde forjou sua carreira no sindicalismo.

Nesta quinta-feira, houve mais uma sinalização do PT ao setor. Candidato ao governo de São Paulo e um dos mais próximos conselheiros de Lula, Fernando Haddad assinou carta de compromisso para incentivar a indústria automobilística no Estado, com promessa de investir em tecnologia a ser aplicada em veículos híbridos e elétricos movidos a etanol.

A conduta do petista difere do distanciamento adotado no início da gestão Bolsonaro, embora o atual governo mais recentemente tenha apoiado temas da indústria, incluindo aprovação de programa de reciclagem de caminhões velhos e redução de tarifas de importação.

“Vimos o governo atual contundente desde o início, falando que não ia investir um centavo na indústria automotiva”, disse Kalume, da Jato do Brasil.

A coordenadora geral de Fiscalização de Regimes Automotivos do Ministério da Economia, Margarete Gandini, afirmou, por sua vez, que cabe ao próprio setor a discussão com o governo sobre o futuro da indústria. Ela participou da formulação dos planos anteriores Inovar-Auto e Rota 2030.

“Temos mais perguntas do que respostas”, afirmou durante evento de engenharia automotiva em agosto. “O governo não produz carros. Ele apoia aquilo que é criado pela indústria a partir de projetos de pesquisa e desenvolvimento”, disse ela durante a conferência Simea 2022.

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