Elon Musk gosta de se colocar como típico empresário visionário que quebras as regras e faz o futuro acontecer. Marketing ou não, o dono da Tesla roubou todos os holofotes do mercado automobilístico para o Tesla Cybertruck, sua picape elétrica, que deve começar a ser produzida em 2021.
O automóvel chamou a atenção principalmente por conta de seu design, cheio de linhas pontiagudas, que parece fruto de filmes de ficção científica como “Blade Runner” ou “Mad Max”. Nas redes sociais, o debate girava em torno de memes que colocavam o automóvel como se fosse desenhado por uma criança e de pessoas que elogiavam a ousadia da proposta.
“Ele realmente quebra todas as regras que nós ensinamos a nossos alunos. É tudo o que dizemos para eles não fazerem”, disse Raphael Zammit, professor do departamento de design de transporte na Faculdade de Estudos Criativos em Detroit, conhecida como capital mundial dos carros, à revista Wired.
“É tudo uma grande jogada de marketing e que funcionou. O mundo automobilístico inteiro parou para discutir o carro. Estão todos estarrecidos, e Musk é especialista em provocar”, diz Luiz Alberto Veiga, ex-executivo de design da Volkswagen, que desenhou carros por mais de quarenta anos.
Para Veiga, é natural o barulho.”A moda se reinventa, mas tem um momento que se esgotam as possibilidades e você precisa de um choque. Hoje, os carros têm tanto trique trique, que cansa. É muita bagunça”, diz.
O carro da Tesla parece que saiu de um jogo de PS1 #Cybertruck pic.twitter.com/9DPkxRLaYB
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Mas, mais do que tudo, o Cybertruck chama a atenção por remeter a uma ideia de futuro apresentada no passado, em especial na década de 1980. As formas retas, a imponência do automóvel, sua proposta remetem diretamente a carros de filmes como “Blade Runner” e de “Volta para o Futuro”, filmes clássicos do final do século 20.
O próprio nome “Cybertruck” e toda a estética da divulgação apontam para o cyberpunk, um movimento de ficção científica contracultural, que apontava futuros distópicos marcados pelo caos de empresas. “Musk capitaliza esse imaginário futurista dos anos 1980, marcado pela paranoia coletiva. O carro é um coquetel molotov de referências de futuro apresentados no passado”, diz Giselle Beiguelman, professora da FAU-USP com pesquisas que relacionam tecnologia e arte.
Um futuro paradoxal
O veículo tem três modelos, com um, dois e três motores elétricos e autonomia de 400, 480 e 800 quilômetros que são vendidos por US$ 39,9 mil, US$ 49,9 mil e US$ 69,9 mil respectivamente. Apesar da controvérsia, Musk sugeriu que já foram feitas 250 mil reservas do automóvel. Para fazer uma, é necessário depositar US$ 100 — o que já garantiria US$ 25 milhões para a companhia.
O VIDRO (QUASE) RESISTENTE DA PICAPE TESLA
Deu ruim na apresentação do cybertruck da Tesla. Durante o evento, um colaborador jogou uma bola de aço contra o vidro do carro, mas a janela quebrou. Uma segunda tentativa terminou da mesma forma.
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Na apresentação do automóvel, a Tesla escolheu, como de costume, apelar para manifestações de masculinidade: em uma mentalidade “maior que o seu”, apresentou o vídeo do Cybertruck arrastando o Ford F-150 (a série F de picapes da Ford é a mais vendida dos EUA); mostrou que o carro aguentava marretadas e? ao tentar provar a resistência do vidro, jogou uma bola de metal que quebrou a janela. A surpreendente gafe fez com que, apesar do burburinho e das pré-vendas, as ações da empresa caíssem.
Embora o veículo seja elétrico, com painel solar bem ao gosto da sustentabilidade ambiental, ele também remonta a um mundo hostil. O veículo é blindado e feito de aço. Veiga o comparou a “tanque de guerra elétrico”, enquanto Beiguelman diz que o automóvel é fruto de uma visão na qual “o mundo é um espaço assustador, que vai te pegar. Você fica em uma caverna nômade”. Nesse sentido, o carro ressoa muito com outra distopia: “Mad Max”.
Do ponto de vista de inovação, há outros paradoxos no automóvel. Por ter formas retas e simples, ele não exige uma estrutura de montagem muito complexa.
“É quase um origami de aço. São recortes e soldas mais simples. Com isso,o desenvolvimento da linha de montagem fica muito mais barata — economizando bilhões”, diz Veiga. Apesar do barateamento do projeto, o veículo é pesado por ser blindado e de aço — o que, provavelmente, encarece o custo de produção. No entanto, Veiga ressalta que o valor do automóvel é relativamente alto.
Elon Musk quis homenagear os carros da Gurgel na Tesla e ngm tá entendendo pic.twitter.com/ynyqVyjkLC
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Outra questão paradoxal é que, além de pesado, o veículo é pouco aerodinâmico, já que linhas pontiagudas não favorecem a aerodinâmica. Apesar disso, os motores elétricos são potentes e têm torque o suficiente para que Musk sequer se preocupe com a aerodinâmica. “Superfícies planas não são aerodinâmicas. São como caixas de sapato. Você não pode mudar leis da Física, mas a Tesla está usando poder bruto para vencer essa questão”, diz Veiga.
Saudades do que não vivi
O maior paradoxo, no entanto, é Musk vender como futuro uma estética que, na verdade, pertence a um futuro imaginado há décadas, mas que nunca se realizou. Um futuro do pretérito. Blade Runner, o filme com carros que inspiraram Elon Musk, inclusive, se passa em novembro de 2019.
A futuróloga Lidia Zuin associa esse fenômeno ao“hauntology”. Como ela explica em sua coluna no TAB, é uma espécie de “nostalgia por futuros perdidos”. “É como lidar com fantasmas. Vemos essas projeções [de futuro], mas não podemos tocá-las”, conta.
Para Beiguelman, a necessidade de recorrer a um futuro imaginado no passado, mostra que somos incapazes de propor novos futuros. “Essa ausência de futuro, mesmo que imaginado, é um dos fatos mais perturbadores do momento em que vivemos”, diz. Para ela, isso explica pelo constante temor de catástrofes de um lado e supressão da noção de tempo (graças às tecnologias digitais) de outro.
“Vivemos em um mundo cheio de carcaças de dispositivos eletrônicos, celulares quebrados, baterias que morrem, sites que não funcionam. Interagimos com um mundo em pedaços. Nesse contexto, as mudanças climáticas soam como alarme de que algo não está funcionando”, diz Beiguelman.
No entanto, o cyberpunk que inspira o design do do cybertruck da Tesla não é uma projeção qualquer de futuro. É a ideia de um futuro que não deu certo. “É uma contracultura que usava os elementos de contestação do punk para criticar o neoliberalismo. É o contraponto ao design da Apple, com tudo limpo, minimalista e redondo. No cyberpunk o design é mais defensivo, o mundo é um lugar dolorido”, diz Beiguelman. Nesse contexto, é irônico que uma empresa use o conceito de um futuro pessimista para vender. “Quando essas críticas do cyberpunk são embaladas como pastiche para viagem, as ideias são neutralizadas”, diz a arquiteta.
Para Zuin, no entanto, nossa incapacidade de imaginar futuros não necessariamente está relacionado ao temor de catástrofes iminentes, mas sim de uma confusão frente às tantas possibilidades de futuro. “Estamos o tempo todo falando de futuros que, na verdade, já acontecem”, diz. Ela cita William Gibson, autor de Neuromancer, o livro que cunhou a expressão cyberpunk e inspirou o filme “Matrix”: “O futuro chegou, só não está igualmente distribuído”.
Blindado, feito para ser produzido de forma mais barata mas com materiais caros, com linhas agressivas, movido a eletricidade, com painéis fotovoltaicos, criado por um empresário que acredita que precisaremos fugir para Marte, o Cybertruck da Tesla é a síntese das angústias e paradoxos que vivemos. Ou, ainda, do mote principal do movimento punk, que também permeia o cyberpunk: não há futuro.