Em setembro de 2019, quando o Salão do Automóvel de Frankfurt fechou as portas, as montadoras preparavam-se para consumar o que seria a maior revolução da história dos veículos movidos a motor a combustão desde que o alemão Karl Benz acelerou um inédito triciclo movido a diesel, a 16 quilômetros por hora, em julho de 1886, em Mannheim, na Alemanha, não muito longe dali.
Nos estandes de Frankfurt, os sonhos pareciam não ter limites: dos carros equipados com sensores, que poderiam dirigir sozinhos, à mobilidade elétrica ao alcance das massas, materializada em modelos como o ID.3, da Volkswagen, que chegaria às concessionárias da Europa por cerca de 25.000 euros. “Ele tem o tamanho interno de um Passat, pelo preço equivalente ao de um Golf, um carro elétrico acessível para muitos”, disse o alemão Herbert Diess, CEO do grupo Volkswagen. Na esteira das inovações, a Uber sonhava com sua primeira frota de táxis guiados por robôs.
Oitenta dias após o encerramento do salão, veio a disseminação do coronavírus, em Wuhan, na China. E o mundo — e o mercado automotivo — deu, literalmente, um cavalo de pau. Golpeadas pelo medo do contágio, as montadoras fecharam as fábricas. Quando as linhas de montagem conseguiram voltar, faltaram componentes como chips, itens fundamentais para operar sistemas de assistência ao condutor ou controle de navegação. Matérias-primas, como borracha para os pneus, plástico ou aço, tiveram suas cadeias de suprimentos afetadas. Ressurgiram bem mais caras. E, apanhados pela crise, muitos consumidores adiaram a troca de carro.
O efeito de tudo isso? Queda de 17% nas vendas de automóveis no mundo em 2020, segundo dados do Observatório Cetelem, centro de dados especializado em consumo. Em alguns mercados, como na Europa e no Brasil, os negócios despencaram ainda mais: 28% e 31%, respectivamente. Milhões de veículos deixaram de ser vendidos e, com isso, o dinheiro ficou mais curto no setor dos automóveis. Um estudo da consultoria McKinsey estima que o lucro das 20 maiores empresas do setor encolheu cerca de 100 bilhões de dólares. Deve levar pelo menos quatro anos para que as vendas recuperem os níveis pré-covid-19. “Não devemos ser otimistas demais e achar que tudo voltará ao normal como se nada tivesse acontecido”, disse em uma teleconferência Ola Källenius, CEO da Daimler.
Não que o ano de 2020 tenha sido ruim para as contas da montadora alemã. Muito pelo contrário: na comparação com o ano anterior, o lucro da empresa cresceu cerca de 50%, para 4,8 bilhões de dólares. No caso da Mercedes, ajudou um bocado a recuperação do mercado chinês. Mas, com vendas totais em queda de 11%, na comparação com 2019, parte dos bons resultados veio do enxugamento de despesas e do corte de 7.000 funcionários (4% do total). Situação similar ocorreu na Ford, que em 2020 demitiu 6.171 funcionários e encerrou três linhas de montagem no Brasil e cortou 12.000 empregos na Europa. A GM acabou com 19.000 postos, fechou fábricas e cortou 25% dos cargos de gerência. Em resumo: o mundo sobre rodas imaginado por executivos no clima efervescente do Salão do Automóvel de Frankfurt, em 2019, com carros elétricos, autônomos, cada vez mais conectados e compartilháveis, ainda virá. Mas terá de sofrer ajustes.
Antes da pandemia, a média de passageiros transportados em São Paulo era de 3,3 milhões. Ela caiu para 2 milhões. Em média, no Brasil, 36% das pessoas passaram a usar menos transporte público. “O medo de contaminação no transporte público está redesenhando a mobilidade”, diz Ricardo Bacellar, líder do setor automotivo da consultoria KPMG, no Brasil. O medo do vírus empurrou muita gente para o mercado de usados, que cresceu 15% em fevereiro no Brasil na comparação com o mesmo mês de 2020, segundo a Fenabrave. Os novos tempos também viraram do avesso as relações das concessionárias com os clientes. Locadoras passaram a ter clientes que antes andavam de metrô ou ônibus. Surgiram novos serviços, como a assinatura de automóveis.
“É um novo mundo na mobilidade, sem a necessidade de ter a propriedade de um carro e com mais flexibilidade”, diz Guilherme Cavalcante, CEO da Ucorp.app, startup que faz a gestão de carros elétricos para empresas. Em um dos produtos que a empresa desenvolveu para o banco Itaú Unibanco, os carros poderão ser alugados até por minutos (a 90 centavos de real), com desbloqueio pelo smartphone. A modalidade mais convencional lembra o leasing, com o uso do carro por períodos de 12, 24 ou 36 meses, mas com a possibilidade de incluir mais de um modelo. “É uma alternativa de mobilidade nova, em que o que se vende são experiências com vários modelos e um uso mais flexível do carro”, diz Bacellar, da KPMG.
Como o risco de infecção passou a ser a primeira prioridade na hora de escolher um meio de deslocamento (era a sexta escolha antes da pandemia), muita gente aderiu às caminhadas e pedaladas. “A pandemia abre uma oportunidade para um novo futuro para as cidades”, diz o arquiteto italiano Federico Parolotto, do Mobility in Chain, empresa especializada em mobilidade. “Muitos deslocamentos para reuniões presenciais deixaram de fazer sentido”, diz. Ajudaram iniciativas como o bônus de 500 euros pelo governo italiano para a compra de bicicletas. Milão anunciou que transformará 35 quilômetros de ruas em ciclovias. Paris fará o mesmo com 50 quilômetros e investirá 325 milhões de dólares. Montreal, no Canadá, pretende fazer ainda mais: 320 quilômetros.
Apesar de quarentenas e maior distanciamento social terem reduzido drasticamente os deslocamentos — desajustando o preço do barril de petróleo —, não significa que os motores a combustão tenham ressurgido como alternativa para a mobilidade urbana. Na Europa, o limite para que as montadoras não paguem uma taxa adicional por emissões caiu de 130 para 95 gramas de dióxido de carbono por quilômetro por frota. Resultado: de 50 marcas na Europa, apenas duas (Tesla e Smart) não pagarão compensações por emitir além do limite em 2021. A soma das multas é de 33,6 bilhões de euros.
O cerco à poluição ainda vai apertar: dentro de três anos, veículos a diesel serão proibidos de circular em Paris. Em 2030, motores a petróleo estarão banidos também em Londres, Berlim, Amsterdã e outras cidades europeias. Não por acaso, símbolos entre os carros esportivos, como Audi, BMW, Mercedes e Porsche, aderiram aos modelos elétricos, e a Ferrari — que anunciou a SF Stradale, um modelo híbrido, no seu portfólio — lançará um utilitário esportivo 100% elétrico até 2025.
Até 2025, as montadoras de automóveis planejam mais de 350 modelos elétricos, a maioria para os segmentos de pequeno e médio porte. Os planos dos 20 maiores fabricantes sugerem um aumento de dez vezes nas vendas anuais de elétricos, de 2 milhões em 2018 para 20 milhões de veículos por ano até 2030. Partindo de uma base baixa, menos de 0,5% do estoque total de carros, esse crescimento significa que quase 7% da frota de automóveis será elétrica até 2030. Poucos deles deverão chegar ao país. “O Brasil tem uma enorme oportunidade de fazer a transição dos carros com motor a combustão para modelos híbridos e elétricos, com o etanol”, diz o engenheiro Henry Joseph Jr., diretor técnico da Anfavea.
De longe o maior mercado mundial para automóveis elétricos, com 1,2 milhão de veículos do tipo vendidos em 2019, a China continuará firme a investir nessa tecnologia. O governo chinês deu um bônus de 10% na taxa de aquisição para veículos elétricos (algo entre 2.350 e 3.265 dólares por carro) e anunciou um subsídio estimado em 1,4 bilhão de dólares para construir uma rede de estações de recarga. Em abril, o governo Joe Biden mandou para o Congresso um pacote para destinar 8,6 bilhões de dólares para incentivar pesquisas para carros elétricos e substituir 200.000 veículos da administração federal por modelos de emissão zero. A previsão é que carros elétricos passem de 300.000 unidades vendidas em 2019 para 400.000 em 2022.
A questão é que as montadoras tradicionais tornaram-se dependentes de utilitários esportivos (SUVs) ou picapes. Estima-se que, em 2022, nove em cada dez modelos vendidos por GM, Ford e FCA no mercado americano serão utilitários esportivos. Há uma razão elementar: o lucro obtido em um carro de luxo desse segmento (vendido por 80.000 dólares no país) é similar ao de 12 carros compactos.
Como nenhum executivo competente rasga dinheiro diante de uma boa oportunidade, os SUVs tornaram-se onipresentes em todos os segmentos. Como resultado, existem mais de 200 milhões de SUVs no mundo, ante cerca de 35 milhões em 2010, respondendo por 60% do aumento da frota global desde 2010. Nos Estados Unidos, um em cada dois carros zero-quilômetro vendidos é um utilitário esportivo. Em 2010, era um em cada quatro. Na Europa, hoje são um terço do mercado.
No Brasil, passaram de 7% para 25% dos automóveis novos em dez anos. E ainda dá para ir mais longe. “Esse segmento tem espaço para se diversificar no Brasil com modelos de entrada, médios, premium…”, disse Pablo Di Si, presidente da Volkswagen na América do Sul, durante apresentação do modelo Taos. Em março, os modelos dessa categoria somaram 37% dos 149.330 emplacamentos no Brasil. Apenas 12.842 carros a menos do que os hatchbacks, o segmento mais popular no Brasil. Considerando que um hatch custa cerca de 60.000 reais e um SUV compacto 75.000, dá para entender o entusiasmo das montadoras por esse tipo de carro.
O grande problema dos SUVs é que eles são ecologicamente incorretos. “Utilitários esportivos são mais pesados, consomem mais combustível e emitem mais fumaça do que carros médios”, escreveu Véronique Andrieux, presidente da ONG WWF na França, em um relatório publicado em outubro do ano passado. “Eles se tornaram a segunda maior fonte de poluição em países como a França.” Por uma questão de estilo, seus pneus são mais largos, as peças mais opulentas e a aerodinâmica pior. Somado tudo isso, emitem mais dióxido de carbono: poluem, em média, 134 gramas por quilômetro, em comparação com os 121 emitidos por sedãs e hatches, segundo dados da Agência Ambiental Europeia. Um caminho para manter o segmento popular poderá ser a chegada de versões elétricas, como o Jaguar I-Pace e o Mercedes-Benz EQC.
Com menos recursos para investir, a situação ficou mais complicada para os carros autônomos. Precisando fazer caixa, as montadoras adiaram novos projetos. Além dos cortes de pessoal, a maioria dos testes teve de ser cancelada por causa de protocolos de distanciamento social, justamente no momento em que veículos sem motorista poderiam ser uma alternativa para transportar bens, com pouco contato humano. Mesmo os carros da americana Tesla, equipados com um sistema de piloto automático, avançaram um pouco além da automação parcial, com frenagem automática no caso de uma colisão iminente. O carro completamente autônomo ainda precisará de ajustes. Aquele mundo novo previsto nos estandes do último grande Salão do Automóvel de Frankfurt, antes da pandemia, ainda vai demorar para acontecer.