Em 2013, por total falta de opções no mercado, o engenheiro de sistemas Julio Cesar Boehl decidiu que ele mesmo faria o projeto de conversão de um veículo convencional a combustão em elétrico.

Após muita pesquisa, e contando com a ajuda de outros brasileiros que já haviam trilhado o mesmo caminho, no ano seguinte Boehl começou a dar forma ao projeto, ao comprar um Citroën C3 2004 com o motor fumando.

Equipado com direção elétrica, airbags, vidros elétricos e ar-condicionado, o hatch de segunda mão era a escolha ideal para ter seu primeiro carro 100% elétrico.

“Na época, eu queria um automóvel sustentável para uso predominantemente urbano, que não poluísse e que pudesse ser abastecido em casa. Também queria um veículo totalmente funcional, com todos os itens básicos de conforto, e seguro. Também tinha de ser leve, para compensar o aumento no peso causado pelas baterias”, conta o gaúcho de 44 anos, morador de Porto Alegre (RS).

Citroën C3 elétrico porto alegre Julio Cesar Otero Boehl motor - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal

Motor elétrico rende cerca de 90 cv; Boehl diz que mantém câmbio quase sempre em segunda marcha

Imagem: Arquivo pessoal

Após a aquisição do veículo, a conversão começou com a compra de um kit, importado dos Estados Unidos, trazendo motor elétrico, inversor e alguns outros componentes. Mas o trabalho só estava começando.

“O kit era muito básico e representava só 30% da implementação necessária. Tive de ir atrás das baterias. Inicialmente, adquiri as de chumbo, mais pesadas e rudimentares. Também tive de comprar e adaptar os demais componentes necessários para fazer tudo funcionar corretamente”.

Dentre eles, o engenheiro cita a central de gerenciamento das baterias, toda a parte mecânica, para acoplamento do propulsor elétrico à transmissão, além dos suportes do motor e do sistema de recarga.

Citroën C3 elétrico porto alegre Julio Cesar Otero Boehl baterias - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal

Baterias foram instaladas no porta-malas e sob o banco traseiro, acrescentando 100 kg

Imagem: Arquivo pessoal

“Toda a instrumentação e controles do veiculo foram construídos depois do kit. Instalei as baterias embaixo do banco traseiro e também no porta-malas, enquanto a transmissão manual de cinco marchas foi mantida”, explica Boehl.

Para compensar o acréscimo de aproximadamente 100 kg no peso, concentrados na parte traseira, foi necessário fazer ajustes na suspensão, relata.

Tentativa e erro

Citroën C3 elétrico porto alegre Julio Cesar Otero Boehl recarga - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal

Recarga completa das baterias leva entre oito e nove horas, diz proprietário do C3

Imagem: Arquivo pessoal

Seguindo o método de tentativa e erro, ele também contou com a ajuda de pessoas como Elifas Gurgel, engenheiro de computação de Brasília (DF) que converteu um Volkswagen Gol G4 2009 – a história dele já foi contada por UOL Carros há cerca de dois anos.

O C3 elétrico ficou em condições de rodar no fim de 2016. Hoje, o hatch tem baterias de 21 kWh, que ampliaram a autonomia original de apenas 30 km para aproximadamente 150 km, enquanto o motor tem cerca de 90 cv de potência, enviada para o eixo dianteiro.

Com esse conjunto, que tem até recuperação da energia nas frenagens, a aceleração de zero a 100 km/h acontece em menos do que 7 segundos, enquanto originalmente era de 9,8 segundos com o motor 1.6 16v a gasolina.

Feita na tomada de casa, a recarga completa das baterias demora entre oito e nove horas, ao custo de menos do que R$ 20.

“O carro ficou muito melhor de dirigir e até estranho os ruídos e as vibrações do meu outro veículo, a combustão, quando eu o utilizo”, relata Julio Cesar Boehl, segundo o qual seu Citroën modificado hoje custa entre R$ 80 mil e R$ 100 mil – muito mais caro do que o valor de mercado de um C3 2004 não modificado.

O projeto, no entanto, ainda está longe de acabar: no início do ano que vem ele pretende trocar as baterias atuais por um conjunto de 37 kWh para ampliar o alcance a aproximadamente 270 km. Ele utiliza baterias com células de segunda vida, reaproveitadas, por questão de custo.

Kits de conversão no Brasil

Citroën C3 elétrico porto alegre Julio Cesar Otero Boehl interior - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal

Cabine traz tela na parte superior do painel com informações sobre o sistema elétrico

Imagem: Arquivo pessoal

Todo esse aprendizado levou Boehl a criar a empresa Energy Systems, que ele acabou de vender para a FuelTech, empresa especializada em equipamentos para veículos de alta performance que criou uma divisão de desenvolvimento de eletrificação – a qual ele passou a integrar.

“A FuelTech tem muito mais potencial do que uma startup como a que eu fundei para o desenvolvimento e a oferta de kits personalizados para a conversão de veículos no Brasil. Esses kits serão comercializados a partir do ano que vem, oferecendo uma solução pronta para quem desejar transformar seu carro convencional em um automóvel 100% elétrico”, diz.

Nos Estados Unidos e na Europa, a oferta de kits de conversão tem crescido bastante, especialmente entre entusiastas que têm paixão por determinado modelo a combustão e querem ter um carro elétrico.

A conversão de veículos antigos, como VW Fusca e Kombi, em elétricos, tornou-se uma tendência nesses mercados.

A FuelTech firmou parceria no ano passado com a Weg, uma das maiores fabricantes de motores e inversores elétricos do País.

Para Anderson Dick, CEO da FuelTech, a oferta dos kits vai tornar o carro elétrico “mais acessível, sem dúvida” e espera-se uma redução drástica nos custos durante os próximos anos – levando em conta que os motores e os inversores terão produção nacional.

“Hoje não existem soluções de conversão prontas, completas e seguras, com todo o suporte e garantia. Vamos começar a comercializar os kits a partir de 2021, inicialmente para quem busca uma performance mais alta, com cerca de 180 cv e 30,5 kgfm de torque”, detalha Dick.

“Como o preço ainda não será extremamente baixo, queremos entregar mais prazer ao dirigir”, complementa o executivo.

Segundo ele, em uma segunda etapa haverá opções menos potentes e também alternativas para modelos híbridos.

O desafio para legalizar veículo

Gênios ou malucos? Eles transformaram Gol, Gurgel e Fusca em elétricos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal

Elifas Gurgel transformou VW Gol G4 2009, mas teve até de instalar e homologar airbags

Imagem: Arquivo pessoal

Mesmo com a facilidade que os kits podem proporcionar, a conversão tem um percalço que aparentemente está distante de ser amenizado: legalizar o automóvel após a modificação, uma exigência do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito).

O problema é que todo o processo para homologação é praticamente o mesmo que se exige das montadoras. E caro: estima-se gasto entre R$ 10 mil e R$ 80 mil.

O requerente tem necessariamente de apresentar um estudo técnico detalhando todas as modificações e a homologação só pode ser realizada por empresa credenciada no Denatran e acreditada pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia), com certificado de capacitação técnica concedido pelo órgão nacional de trânsito.

Somente assim é emitido o CAT (Certificado de Adequação à Legislação de Trânsito).

No caso de Elifas Gurgel, o processo de homologação do seu VW Gol G4 2009 levou quase seis anos até a entrega do documento atualizado, em 2015. Na época, o CTB (Código de Trânsito Brasileiro) já previa o registro de veículos elétricos no país, porém não havia regulamentação para a “transformação”.

Na época, o Denatran exigiu que a conversão incluísse instalação de airbags dianteiros e freios ABS, itens obrigatórios desde 2014. “Tive de comprar os componentes, fazer a instalação e contratar uma empresa terceirizada para fazer o teste de frenagem exigido, mesmo que a lei só obrigue a instalação de airbags em carros fabricados a partir de 2014”, afirma.

No caso de Julio Cesar Boehl, ele ainda não conseguiu homologar seu C3 a baterias. Para poder rodar, ele obteve placas verdes, aquelas para veículos experimentais.

“A legislação brasileira poderia criar uma forma de homologação similar ao que acontece hoje com o .GNV e não tratar disso como se o veículo fosse fabricado do zero. Acredito fortemente que esse movimento dos órgãos responsáveis virá. O Brasil tem indústria nacional para a maioria dos componentes e potencial para se tornar um polo de fabricação de carros elétricos”, opina Anderson Dick.

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