Executivo acredita que a mobilidade compartilhada perderá espaço no pós-pandemia

A venda de carros caiu 76% em abril com apenas 55.700 veículos, o pior resultado mensal para o setor automotivo desde fevereiro de 1999. O setor pode ir à falência?

Não há sinalização nesse sentido. Nós já vivemos tantas crises que o brasileiro já é bastante vacinado contra crises. Normalmente, a gente passa por momentos difíceis, se organiza, aproveita a oportunidade para se aperfeiçoar, e segue em frente. Claro que essa crise atual trouxe alguns elementos novos em relação aos eventos anteriores. Eu poderia destacar dois deles. O primeiro diz respeito que essa pandemia atacou o elemento mais sensível de qualquer negócio que é o cliente. E com distanciamento social esse cliente saiu das ruas. E saindo das ruas, saíram das lojas, das fábricas. Tudo ao mesmo tempo, o que criou uma crise sem par na história. Outro elemento é que nós participamos de um negócio global. E essa crise, ao contrário das demais, que sempre atacaram pontos específicos do globo, dessa vez está atacando tudo ao mesmo tempo. 

Se você não vê esse perigo da falência neste ano no pós pandemia , como fica o cenário para o setor nos próximos três a cinco anos? 
Na verdade vai ter uma reacomodação. Estamos passando por processo de mudança social. Então é fundamental que a nossa indústria e qualquer uma outra esteja muito atenta a qualquer transformação que deva ocorrer. Principalmente porque qualquer tipo de consumo fica muito influenciado pela percepção do valor de compra. A percepção do valor de compra é composta por uma série de itens que se modificam de acordo com o ambiente social. Eu vou te dar um exemplo prático disso. A gente tem acompanhado de lupa o que tem acontecido na China. E o que a gente observa lá? Início de retomada da indústria focado em veículos usados porque é mais acessível economicamente. O consumidor está voltando a privilegiar alternativa de veículo pessoal. Ou seja, voltando a ter o próprio carro em detrimento das alternativas de deslocamento coletivo. As pessoas estão se interessando a voltar ter o próprio carro, porque a percepção de conforto sanitário passou a ocupar um pedaço da caixinha de perceção de consumo. 

Vamos ver se isso vai acontecer aqui né, Barcelar? 
A gente tem que observar que quando a gente fala de mudanças sociais normalmente o que se aplica na Ásia, na Europa, nos Estados Unidos não se aplica aqui na íntegra e vice-versa. Eu diria até mais. Como nós moramos em um país de dimensões continentais, que têm diferenças culturais aqui dentro, essa avaliação também provavelmente também não seria linear. 

Os SUVs crescem no gosto do consumidor. Mas, por essa mudança de cenário, os carros de entrada poderiam ter demanda maior? 
A chance é grande, mas temos que acompanhar de perto. Isso tem influência muito grande do ambiente econômico. Então, se pós pandemia, a gente viver um ambiente de desemprego e pouca confiança do consumidor ou se tivermos ambiente de oferta de crédito que não seja amistoso, pode influenciar a resposta. Mas eu diria que de maneira geral a chance é muito grande de que o retorno venha primeiro em carros baratos, provavelmente carros usados. Pode ser que as montadoras tomem como estratégia criar modelos um pouco menos incrementados em termos de acessórios e recursos tecnológicos. Tem uma outra ponta que são os consumidores de veículos premiuns que normalmente são menos sensíveis a esse ambiente. Então pode ser que não haja muita modificação no nível dos veículos premiuns. 

Queria te pedir para situar o nosso leitor sobre o peso desse mercado para a economia brasileira em termos de PIB, geração de emprego, etc. E uma segunda pergunta, a retomada começa agora na segunda quinzena de maio para, algumas montadoras que já começam a retomar a produção. Quem será o público dessa primeira produção?

A indústria automotiva deve representar em torno de 20% do PIB. O que acontece de novo, o nosso negócio sofre influência muito grande da oferta de crédito. Isso tem um pouco a ver com a resposta da segunda pergunta. Essa retomada ainda vai ficar mais intensa no mercado de caminhões, por exemplo, por que o agronegócio sofre menos influência. Às vezes, nós nos grandes centros não temos visão disso, mas você pode perceber que a maior parte das plantas que estão retornando são plantas de caminhões porque existe demanda para isso. E ontem a gente viu o governo fazendo um movimento a favor de retomada do negócio de construção civil.Se isso acontecer, é mais uma tendência para reforçar o retorno do mercado de caminhões. Mas no mercado de passeio vamos ter que olhar outros indicadores, como se a massa empregada vai continuar grande, se os empregos vão ser retomados, se a parcela de salário que foi retirada agora vai ser restaurada, se o consumidor vai voltar a ter confiança, e se o crédito para o consumidor final vai descer para patamares palatáveis. Esses são elementos fundamentais para fechar fechar essa equação.

Vamos falar um pouco das locadoras. A gente tem a Hertz em situação bem complicada na Europa, iminência de fechamento de vários concessionários, Agora não seria momento das montadoras retomarem esse espaço?

Olha, o desenvolvimento de qualquer modelo de negócio, isso não nasce do dia para a noite. Se fosse mais simples abrir um negócio de locação, certamente teríamos mais players no mercado. Não existe muita ciência na retaguarda desse negócio, principalmente na gestão da logística. Imagina uma operação nacional de locação em um país como o nosso, atender a demanda dos clientes em cada loja, fazer uma boa distribuição dos veículos, ter uma boa eficiência financeira, isso são elementos extremamente relevantes na gestão de um negócio como locação. E as montadoras tem experiência em outro tipo de negócio. Não que seja impossível. Mas não é simples, do dia para a noite. A gente viu pré covid muitas  montadoras se movimentando no sentido de criar negócio de locação, mas a gente tem observado que, ao longo dos últimos anos, com o negócio da locação aumentando muito, as locadoras se transformaram em um grande cliente da indústria automotiva. Isso acaba gerando desconforto criar negócio para disputar mercado com seu principal cliente. O que a gente viu, principalmente no segundo semestre do ano passado na Europa, que trouxemos para cá, que foi um conceito novo, que é a assinatura de veículos, que não tem nada a ver com locação, é completamente diferente. A gente já vinha fazendo essa discussão aqui no Brasil, inclusive com fato curioso, ano passado a gente lançou o primeiro capítulo da nossa pesquisa  automotiva nacional. Nós entrevistamos mais de mil consumidores no Brasil e mais de 80% dos consumidores consideraram interessante a alternativa para adquirir um veículo. Então, tem um espaço enorme para criar um negócio que crie uma competição direta com locadoras. 

Eu queria saber sua opinião com relação as fusões. Você acredita que na medida que são compartilhados componentes, compras compartilhadas, pode ajudar na redução do preço final?
As fusões não vem para dar retorno em redução do custo de produto, mas do volume de investimento necessário para oferecer produto mais tecnologicamente sofisticado.  Eu havia mencionado produtos de entrada, mas todos os produtos da indústria se aperfeiçoaram muito e ficaram muito sofisticados. E para entregar esses produtos teve investimento grande na infraestrutura de produção, no Brasil temos plantas super sofisticadas com indústria 4.0. Então, isso exige muito investimento.  E esse investimento com as pautas trazidas, como a do carro elétrico, vinha consumindo investimento grande da indústria e com resultado de médio e longo prazo. Fora a pressão grande dos governos, estabelecendo prazos. Em alguns momentos, é preciso fazer aliança para suavizar a necessidade de investimento e entregar o que o consumidor quer.

O que seria o maior gargalo da indústria?
Se pudesse resumir em um, dois ou três eu acho que a indústria estaria bastante feliz. Temos que recordar as pautas diversas que a indústria vinha tratando ao mesmo tempo:  investimento grande no aperfeiçoamento na linha de produção, nos produtos, trazendo produtos novos como veículos elétricos, isenção de tecnologia e conectividade forte dos produtos, necessidade de diversificar rede de fornecedores, e de aperfeiçoar rede de distribuição. Nos últimos anos, necessidade da indústria fazer frente a todas essas iniciativas ao mesmo tempo e todas exigindo grande volume de investimento, e o trabalho vinha sendo feito muito bem apesar de todas as cobranças. A indústria vinha fazendo bom papel. 

E quanto ao Rota 20 e 30, em que pé está e qual o desafio dele diante da pandemia?
Antes da pandemia vinha sendo cumprido, as metas estavam sendo trabalhadas dentro do planejamento, com a chegada da covid ainda não teve espaço para abrir discussão sobre isso. Todo mundo focado nos problemas de caixa, focado no financeiro tributário. Mas eu acho que dificilmente não vai haver rediscussão das metas, porque a realidade é outra. Só para fazer paralelo, antes da pandemia as montadoras já estavam em discussão para redefinir as metas lá. Tem países que estabeleceram que em 2025 não podia ter veículos a combustão. Na situação em que estamos vivendo hoje, se já era difícil pré-coviod, agora mais do que nunca. 

Como você enxerga pós pandemia a digitalização da venda, a falta da necessidade presencial para ver um carro. Essas montadoras que têm redes concessionárias, como enxerga isso nos próximos anos?
Na nossa pesquisa do ano passado, fizemos pergunta para o consumidor se já aplicava parte da jornada de análise de compra na internet ou ainda sustentava loja física. E 90% já faziam as primeiras etapas da jornada de compra na internet. 

O problemas de caixa das empresas impactam nos investimentos, como nos do carro elétrico?
A metade vazia do copo é que os projetos ligados a investimentos foram suspensos. O foco está em usar as moedas do bolso para resolver a sobrevivência. Os projetos foram suspensos. A metade cheia do copo é que não se ouve falar em cancelamento de projetos. 

Dá para pensar em carro elétrico mais barato?
Na nossa pesquisa do ano passado, a gente fez uma pergunta direta para o consumidor brasileiro. “Você teria interesse em veículo elétrico se tivesse a disposição para comprar?”. Deu mais de 80% de assertividade. Ou seja, o brasileiro há um ano atrás já estava interessado em veiculo elétrico.  Claro que essa pergunta não embutiu nenhum componente de preço porque a gente queria entender a aceitação do veículo elétrico. Outro lado é a viabilidade de produção no Brasil. Antes da Covid, a gente já discutia os desafios para colocar a produção de veículos elétricos no Brasil pelo custo. Uma bateria de carro médio no ano passado custava 9 mil dólares em média. Imagina um componente 9 mil dólar. Então o desafio para produzir veículos elétricos aqui é muito grande. E eu não estou falando da capacidade tecnológica de produzir isso aqui, de ter fornecedores capacitados. Os desafios são grandes. Essa é uma das pautas que provavelmente será adiada. 

Em algum momento, o nível de normalidade vai voltar. Como você enxerga a transformação do parque circulante a combustão para híbrido  e depois elétrico?

Antes da Covid, a gente já tinha dificuldade de fazer essa análise. Até pela situação privilegiada do Brasil na produção de combustíveis, como o etanol. E aí se a gente colocar na discussão que existem fortes investimentos para oferta de etanol 2.0 mais eficiente que o atual e investimento em motores puramente etanol muito mais eficiente do que hoje, o cenário aponta etanol como grande alternativa brasileira. 

Por que o etanol não virou moda no mundo?
Há muitos anos, a baixa Ásia capitaneada pela Índia, Tailândia tem se tornado grande produtora de cana de açúcar, mirando o ativo açúcar. Agora esses países estão começando a descobrir o que a gente descobriu há mais de 40 anos que podem fazer um ativo valioso que é o etanol. Eu tive a oportunidade de estar na China no ano passado e participei de uma reunião com o governo indiano onde o assunto não fazia parte da pauta oficial.  Mas quando a delegação deles descobriu que tinha um brasileiro lá, essa pauta entrou em cima da mesa e a gente começou diálogo fortíssimo e eles queriam saber tudo sobre etanol. E algumas delegações do Brasil, nos últimos seis meses, já estiveram nesses países discutindo exportação de tecnologia de plantio e produção para eles. A delegação que Bolsonaro levou para a Índia também tinha isso na pauta e foi muito pouco divulgado. Depois que passar a pandemia essa pauta deve voltar e deveremos ter grandes novidades. 

A cadeia produtiva está negociando auxílio de R$ 40 bilhões em crédito. Hoje o isolamento de São Paulo foi endurecido, o que quer dizer que a pandemia pode durar um pouco mais. Esse valor seria suficiente?
Nós não fizemos parte desses cálculos.O que a gente observou que governo tomou iniciativa boa de injetar liquidez no mercado, mas em visão linear entre as indústrias todas. E não dá para fazer dessa forma, porque tem indústrias que sofreram muito até mais do que a automotiva, como a hoteleira, e tem umas que potencializaram negócios na crise. E tem grupo intermediário onde está a automotiva. Governo já entendeu que precisa pegar aquele R$ 1,3 trilhão e dividir de forma heterogênea entre as indústrias. 

Acha que existe espaço para voltar a falar de renovação de frota?
Talvez fosse bom momento para retomar essa pauta. É um problema que a gente convive há anos. Talvez seja bom momento. 

E tem a sucata que poderia entrar como ativo, o que é uma discussão antiga e que não está na pauta como deveria. 
Eu lembro que a primeira vez que eu puxei isso como pauta em 2015 em que eu chamei a atenção para uma lacuna muito grande na logística reversa, que já é aplicada um pouco em caminhões. Mas caminhão não tem o mesmo volume de veículo de passeio. Isso poderia ser uma oportunidade de negócio incrível e ser o componente que faltava para viabilizar essa renovação de frota. Acho que poderia ser uma grande oportunidade de negócio.



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