- Adrienne Bernhard
- BBC Future
O filme Blade Runner original (1982) se passa em uma Los Angeles imaginária de 2019, uma cidade futurística onde a chuva ácida cai de um céu repleto de carros voadores transitando pelas estradas aéreas.
Desde então, a tecnologia avançou de maneiras que Hollywood jamais poderia prever. Mesmo assim, táxis voadores ainda parecem uma fantasia longínqua, reservada a livros de ficção científica e atrações de parques temáticos.
Mas os carros voadores são reais — e eles podem definir a forma como vamos nos deslocar, trabalhar e viver nas próximas décadas.
Avanços na densidade energética das baterias, na ciência dos materiais e nas simulações de computador estimularam o desenvolvimento de uma variedade de veículos aéreos pessoais e sistemas de navegação que permitirão que eles funcionem — de planadores elétricos e veículos com asas fixas a drones quadricópteros.
Essas aeronaves podem não parecer exatamente como as do mundo imaginário de Blade Runner. Mas não estão tão distantes.
Bem menor que um avião comercial, a maioria é projetada com rotores em vez de asas, que permitem decolagem e pouso vertical. Os rotores de inclinação, por exemplo, proporcionam eficiência em voos lineares de longas distâncias, enquanto os multirotores são desenvolvidos para reduzir o ruído em voos “pairadores”.
Mais importante, esses veículos são projetados para oferecer deslocamentos mais rápidos do que os modos tradicionais de transporte para os indivíduos, especialmente em cidades congestionadas.
Atualmente, o mercado autônomo de aeronaves urbanas ainda é meio que um Velho Oeste. Dezenas de startups estão competindo para desenvolver jetpacks (mochilas a jato) comerciais, motos voadoras e táxis aéreos pessoais.
Investidores de capital de risco, companhias automotivas e de aviação (até mesmo a Uber, com seu ambicioso Uber Elevate) estão apostando na indústria em expansão, que pode valer até US$ 1,5 trilhão em 2040.
Enquanto isso, as autoridades da aviação discutem as políticas e os padrões de segurança que vão reger esse novo setor de transporte.
A Volocopter, com sede na Alemanha, por exemplo, apresentou seu veículo VoloCity ao mercado como o primeiro táxi aéreo movido a eletricidade com licença comercial, um veículo que um dia funcionará sem piloto.
“É como um Uber Black ou qualquer outro serviço premium”, diz Fabien Nestmann, vice-presidente de relações públicas da Volocopter.
Com algumas diferenças importantes, claro. A princípio, o VoloCity terá espaço para apenas um passageiro. Isso significará um custo mais alto por viagem no início.
Mas a Volocopter espera conquistar a confiança do consumidor antes de fazer a transição para um modelo de autonomia total: um veículo elétrico sem asas movido por nove baterias, que transportará passageiros por uma rede planejada de vertiports — aeroportos para aeronaves que decolam e pousam verticalmente — nas principais cidades .
Os primeiros voos comerciais da VoloCity estão programados para acontecer em 2022.
Esses primeiros voos custarão 300 euros (cerca de R$ 2 mil) por passagem. Mas o objetivo da empresa, diz Nestmann, é tornar o custo tão competitivo quanto, digamos, um Uber Black.
“Não queremos que seja um brinquedo para os ricos, mas parte de uma jornada bem integrada para qualquer pessoa na área urbana”, afirma.
“Todo mundo deve ter a opção de caminhar, dirigir, pedalar ou voar.”
Outras empresas fizeram parceria com fabricantes de automóveis existentes para criar modelos que planejam desenvolver para um eventual uso comercial. A startup japonesa SkyDrive, por exemplo, recentemente se juntou à Toyota para conduzir um voo de teste do seu táxi aéreo totalmente elétrico, considerado o menor veículo elétrico do mundo que pode decolar e pousar em posição vertical,
Neste verão, o veículo SD-03 da empresa voou por vários minutos ao redor de um campo de aviação com um piloto no comando.
“A demanda do consumidor cresceu, mas os seres humanos ainda não ofereceram uma solução clara para o tráfego, mesmo com opções como carros elétricos ou alternativas rápidas como o TGV [trem intermunicipal da França]”, diz Takako Wada, representante da SkyDrive.
“Poderia dizer que a mobilidade da SkyDrive foi nutrida pelas demandas de consumo, assim como pelos avanços da tecnologia.”
De fato, esses avanços tornam possível para projetistas de aeronaves clamar por tempo no ar, por assim dizer. Empresas como Lillium, Wisk, Joby Aviation, Bell e inúmeras outras estão capitalizando em inovações como propulsão elétrica, que reduz drasticamente as emissões de ruído, e energia de bateria, que aumenta o alcance.
Para uma indústria incipiente, não faltam projetos de veículos de decolagem e pouso verticais (VTOL, na sigla em inglês), ou de altitudes imaginárias que podem ser alcançadas com eles.
Ajuda dos céus
Pense na Gravity Industries, uma empresa aeronáutica com sede no Reino Unido que criou uma mochila a jato de 1.050 cavalos de potência.
“É um pouco como um carro de Fórmula 1”, diz Richard Browning, piloto de testes chefe e fundador da empresa.
“O Jetsuit é um equipamento especializado que apenas pilotos comerciais profissionais e militares podem pilotar, por enquanto”, Browning acrescenta, apontando para uma engenhoca metálica no estilo Batman em seu estúdio.
“Algum dia, a mochila a jato pode significar que um super-herói paramédico suspenso no ar pode tomar decisões sobre onde ir e o que fazer.”
Este não é um projeto tão absurdo quanto parece: a Great North Air Ambulance Service fez recentemente uma parceria com a Gravity Industries para simular uma missão de busca e resgate.
Browning voou com sua mochila a jato da base do vale escarpado de Langdale Pikes, no Lake District, na Inglaterra, para o local de um acidente simulado. A pé, teria sido uma subida árdua de 25 minutos. O voo durou 90 segundos.
O exercício ilustrou o potencial das mochilas a jato de fornecer serviços de cuidados intensivos em locais remotos.
“O sonho do transporte aéreo existe há muito tempo”, diz Parimal Kopardekar, diretor do Instituto de Pesquisa Aeronáutica da Nasa, agência espacial americana, no Centro de Pesquisa Ames no Vale do Silício, na Califórnia.
“Há uma oportunidade poderosa agora para projetar veículos que podem transportar bens e serviços onde a aviação atual não consegue chegar.”
Kopardekar é responsável por explorar as tendências da aviação no campo de autonomia e mobilidade aérea avançada, incluindo VTOLs. Dada a complexidade dessa empreitada, a equipe da Nasa precisa abordar e testar todo um ecossistema de fatores: aeronaves, espaço aéreo, infraestrutura, integração da comunidade, padrões climáticos, GPS, normas acústicas, manutenção, cadeia de suprimentos, aquisição de peças…
É uma lista que revela inúmeros (e nem sempre óbvios) problemas que devem ser resolvidos antes que o compartilhamento de viagens aéreas em grande escala se torne realidade.
Reimaginar o voo humano requer veículos que sejam “permitidos nas estradas” e seguros para voar, mas também um público disposto a voar neles.
Os líderes da indústria precisam convencer os usuários de que os VTOLs não são atraentes simplesmente porque a tecnologia é possível, mas porque são preferíveis a outros modos de transporte — e seguros.
“Você não pode oferecer serviços comerciais sem regimes de teste extremamente vigorosos”, diz Nestmann, que supervisiona as iniciativas de educação pública da Volocopter.
“Parte disso é desenvolver a infraestrutura para essas máquinas.”
Isso pode significar a construção de hardwares de vertiports e instalações de armazenamento equipadas com energia elétrica ou softwares rodando nos bastidores: os sistemas necessários para executar os VTOLs vão exigir sem dúvida automação quase total para coordenar adequadamente os enxames de veículos previstos.
Enquanto as aeronaves comerciais em que viajamos hoje são monitoradas por controladores humanos em uma torre, as máquinas voadoras de amanhã contarão com um UTM — sigla em inglês para Gerenciamento de Tráfego Não Tripulado.
Dominando as ‘vias do céu’
Este rastreamento digital vai garantir que todos os VTOLs tenham conhecimento de outros voos em seu caminho.
O transporte vertical totalmente automatizado com experiência comprovada pode deixar o público à vontade, mas uma vasta rede de objetos voadores cria uma série de novos desafios. Os VTOLs vão dispensar a necessidade de pistas ou estacionamentos no solo, mas exigirão corredores aéreos e portos no céu dedicados a armazenar os veículos.
Os táxis aéreos podem reduzir o número de carros no solo e aumentar a previsibilidade do horário de chegada e partida, mas o grande número de objetos no céu — edifícios, pássaros, drones de entrega e aviões — exigirá que os pilotos (pelo menos, enquanto os VTOLs são pilotados) pratiquem um novo tipo de dinâmica para evitar obstáculos.
As “vias do céu”, por falta de um termo melhor, vão precisar de seu próprio conjunto de leis.
Além disso, os fabricantes e operadores terão de mostrar que não haverá nenhum dano aos passageiros ou às pessoas em solo.
Em conjunto com a Administração Federal de Aviação dos EUA e outros órgãos reguladores, a Kopardekar e a equipe da Nasa criaram uma “Escala de Níveis de Maturidade de Mobilidade Aérea Urbana”, que classifica os veículos, o espaço aéreo e outros sistemas em uma escala de um a seis com base na complexidade e densidade urbana.
Eles estão desenvolvendo maneiras de simplificar as operações da cabine de comando, com uma combinação de automação e gerenciamento de contingência: diretrizes sobre como um VTOL pode responder ao mau tempo, colisão de pássaros ou invasão repentina de mochilas a jato, por exemplo.
Uma proliferação de máquinas voadoras
Os incidentes já mostraram a importância desses tipos de diretrizes: em outubro de 2020, tripulantes de um avião comercial próximo ao aeroporto de Los Angeles avistaram um jetpack a mais de 1.828 m — altitude que apresenta sério risco de colisão.
A Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) também criou um conjunto de especificações técnicas para VTOLS, embora a agência ainda não tenha decidido como certificá-las.
Essas especificações visam abordar as características únicas dos carros voadores e detalhar padrões de aeronavegabilidade, como saídas de emergência, proteção contra raios, sistemas de trem de pouso e cabines pressurizadas.
“Apesar de ter características de design de aviões, helicópteros ou ambos na maioria dos casos, a EASA não foi capaz de classificar esses novos veículos como aviões convencionais ou helicópteros”, informou a EASA em comunicado.
Em outras palavras, a EASA parece indecisa sobre o que exatamente separa os VTOLS dos jatos comerciais de asa fixa ou helicópteros.
Claramente, a operação bem-sucedida de VTOLs exigirá esforços coordenados em todos os setores, incluindo governo, tecnologia, transporte, planejamento urbano e alcance público.
Mas o que explica a proliferação repentina de desenvolvedores de VTOL?
Tendências globais como a ascensão do comércio eletrônico, mudanças climáticas, a “gig economy” (economia que gira em torno do trabalho temporário, free-lance ou independente) e uma cadeia de suprimentos integrada aceleraram o interesse em viagens aéreas pessoais, enquanto falhas em nossa infraestrutura atual e setores relacionados enfatizam sua necessidade.
À medida que cidades como Hong Kong e Pequim atingem sua capacidade máxima, a vida urbana se torna cada vez menos sustentável — embora nossa economia cada vez mais interconectada demande mobilidade constante.
Os efeitos podem transformar nosso deslocamento diário e a vida como a conhecemos.
“No momento, a maioria das pessoas otimiza a vida com base no acesso ao transporte”, observa Kopardekar, da Nasa.
“Os VTOLs e drones vão tornar possível alcançar as pessoas onde quer que estejam, para otimizar o transporte com base na vida delas.”
As empresas não terão mais que procurar distritos comerciais centrais para suas sedes, enquanto os funcionários podem optar por morar em qualquer lugar ao alcance de um táxi aéreo.
Ter um VTOL pode se tornar tão acessível e onipresente quanto ter uma bicicleta.
“No nível macro, as cidades em expansão geram uma necessidade crescente de mobilidade dos cidadãos nessas cidades”, diz Nestmann, da Volocopter.
“Isso nos leva a repensar a cidade, porque construir tudo ao redor do carro não melhora a qualidade de vida.”
Uma transformação urbana
Os congestionamentos de trânsito desgastam as rodovias de nossas cidades e os carros que dirigimos nelas, contribuindo para as emissões que, por sua vez, ameaçam os delicados ecossistemas de nosso planeta e nossa própria saúde.
Enquanto isso, eVTOLS (que são elétricos) reduzirão drasticamente as emissões ou a dependência do combustível a diesel.
O número crescente de carros voadores vai naturalmente dar origem a uma mudança na forma como nossas cidades são estruturadas à medida que ficam mais altas, os pousos nos telhados se expandem e as rodovias aéreas conectam a superarranha-céus, liberando espaço abaixo.
A presença de menos carros em solo vai reduzir o congestionamento e pode dar origem a parques e espaços verdes.
“No longo prazo — de 2045 em diante — os empreendimentos e os espaços verdes se tornarão muito mais integrados”, diz Kopardekar.
“Embora possamos nunca eliminar metrôs e estradas, podemos reduzir sua pegada com essas máquinas.”
Os VTOLs têm vastas implicações para o futuro do transporte, vida pessoal e profissional, consumo, design urbano e até saúde e ecologia. Em 2030, os consumidores poderão apertar um botão e pedir um táxi aéreo direto para seu escritório conectado à nuvem.
Nas décadas seguintes, podemos ter cada vez menos razões para descer à terra, conduzindo nossos negócios e nossas vidas no topo de uma cidade no céu.
“Uma milha na estrada te leva a apenas uma milha”, diz Kopardekar.
“Uma milha de aviação pode te levar a qualquer lugar.”
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