No trânsito da Lapa, meio-dia, João Gilberto, voz e violão, soa límpido em uma cabine bem isolada do ruído exterior. Nada de barulho de motor ou vibrações — estamos dirigindo em um ambiente digno para a fruição da música do baiano. Lá fora, céu de azul intenso no inverno de sol morno. Cá dentro, vamos lidando com os modos civilizados do Nissan Leaf, carro 100% elétrico que nos faz pensar em um mundo mais humano. Imaginamos tudo o que poderíamos ser se não tivéssemos escolhido caminhos errados para o desenvolvimento.
Após conviver por quatro dias com o recém-lançado Leaf, fica a sensação de que os outros carros (mesmo os híbridos) ficaram velhos. E que todo mundo deveria ter direito a um elétrico logo. Para ontem!
A má notícia é que esse modelo importado da Inglaterra chega aqui muito mais caro do que se imaginava: R$ 195 mil (preço ainda mais alto do que os R$ 178 mil anunciados no último Salão de São Paulo). É um hatch médio que custa como carro de luxo, daí que a estimativa de vendas não passa de 200 unidades por ano no Brasil. Apenas sete concessionárias da Nissan no país, uma delas no Rio, receberão o carro. Culpa da questão cambial, dizem.
Passado o choque de realidade — com trocadilho — vamos ao mundo de novidades que é usar um carro elétrico no dia a dia, por distâncias urbanas. Recebemos o Leaf com 95% de carga na bateria e, segundo a informação do quadro de instrumentos, 240km de autonomia. Em nosso período com o carro, esse medidor de consumo imediato/distância restante será o mostrador mais consultado do painel que, aliás, tem informações muito claras e fáceis de se ler.
Para ligar o carro, solte o freio de estacionamento (um pedal lá na esquerda, à moda dos Estados Unidos), pise no freio normal, libere o park e o aperte botão de partida. Silêncio total!
Em vez de alavanca de marchas, há no console um joystick em forma de cogumelo. Puxe-o para trás, e o Leaf andará para a frente. Empurre-o adiante, e o carro dará ré.
O grande barato do Leaf de segunda geração é o e-Pedal. Uma tecla no console ativa um modo radical de regeneração de energia, que equivale a um poderoso freio-motor. A partir daí, você praticamente se esquece do pedal do freio e só usa o acelerador.
e-Pedal, o rei da vaga em ladeira
Pedal de freio, só em situações inesperadas. De resto, tire o pé do acelerador, e o carro vai parando suavemente. A parada será total mesmo que você esteja numa descida de ladeira! Quem ajustou o sistema fez um belo trabalho — nessas “freadas automáticas”, não há soluços ou cabeçadas para a frente, e parece que o carro está conectado ao pensamento de quem o dirige.
O motorista se acostuma rapidamente e já não quer mais nada na vida além do e-Pedal, bem como o modo Eco, para ganhar alguns quilômetros de autonomia.
O acelerador também é muito preciso e linear. O carro só anda, milimetricamente, o tanto que dá de curso no pedal.
O melhor do e-Pedal é lidar bem com vagas apertadas em rampas. Vá comandando o acelerador com leveza, na ponta do pé, e pronto. Esqueça aquela história de coordenar movimentos com o pedal do freio. Nunca foi tão fácil dirigir — um cachorro mais ou menos amestrado deve ser capaz de guiar o Leaf…
Outra: graças ao e-Pedal, provavelmente o carro rodará a vida toda sem precisar trocar pastilhas de freio.
Em marcha ré, soa um “pim… pim… pim…” bem baixinho, como alerta. De resto, o Leaf é tão silencioso que há até um certo perigo nisso — os pedestres mal percebem que o carro está se aproximando.
Na cidade e andando devagar, na função Eco e com o e-Pedal ativo, o máximo que se escuta é um ruído que lembra um elevador em ação. Pista livre e chega a hora de brincar um pouco.
O ‘botão de nitro’
Desligar as funções e-Pedal e Eco é como apertar um botão de nitro. O carro dá um salto à frente e passa a se comportar de maneira totalmente distinta.
Pé no fundo e a casa cai: a aceleração é imediata, acompanhada por um assovio que soa como o Batmóvel dos anos 60 ou um F-86 Sabre esquentando a turbina. É isso: sair de um carro comum para um 100% elétrico é como passar de um caça a hélice para um jato de primeira geração. Nesse modo de condução (teoricamente, o “normal”), o Leaf anda forte e não há qualquer efeito de freio-motor. O carro fica solto.
A direção não oferece feeling esportivo mas tem peso correto. Os comandos são ótimos e o carro, bom de curva, com peso concentrado lá embaixo (a bateria vai no assoalho da cabine, enquanto motor e tração são dianteiros).
Nas ultrapassagens, ou acessos a pistas de alta velocidade, o modo normal é uma maravilha. Só que a carga da bateria baixa num instante. A máxima é de modestos 144km/h – andar mais rápido do que isso iria reduzir muito a autonomia, e o Leaf é um carro urbano.
— Tem que carregar todo dia, feito celular? — perguntou um vigia da garagem.
Depende…
O Leaf é um carro feito para quem mora em casa e pode ter um carregador fixo na parede (o dito wallbox e sua instalação estão incluídos nos R$ 195 mil do preço do carro). Ao chegar à noite, ligue o carro na tomada e, em oito horas, no máximo, a bateria estará a 100%.
Há ainda adaptadores que permitem ligar o Leaf nos raríssimos pontos de carga rápida existentes em postos de combustível (80% da carga em 40 minutos).
Carga no mundo real
Por fim, há um cabo de carga (bem) lenta para ligar em tomadas comuns. E foi este o recurso que tentamos usar na garagem do jornal.
Trata-se de uma pesada traquitanda que inclui um cabo grosso, grandes tomadas e um enorme retificador de corrente. Em teoria, pode ser plugado em qualquer tomada de três pinos brasileira (de 110V ou 220V).
É tudo tão pesado que não dá para pendurar na tomada… Em teoria, o cabo teria que ficar rente ao chão. Ocorre que, na garagem do jornal, as tomadas estão a um metro do piso. Solução? Pôr uma extensão de fio normal — mas será que não é arriscado? A potência da recarga é baixa e, em teoria, deve aguentar. A Nissan, contudo, não recomenda a gambiarra. Testamos por um tempinho e achamos melhor não arriscar.
Para usar em casa, no trabalho ou na garagem de um hotel/casa de amigos, o ideal seria ter um cabo mais portátil, e bem comprido (descobrimos que não é tão simples achar tomadas numa área grande o suficiente para entrar um carro).
Na prática, por mais que se dirija devagar, a indicação de autonomia cai mais rapidamente do que os quilômetros efetivamente rodados. Ao cabo de quatro dias de uso urbano, entre casa e trabalho, havíamos percorrido 120km (mas a autonomia baixou no marcador caiu 151km). Ainda sobravam 33% de carga na bateria.
Quero ser normal
Por fora, o Leaf parece um algo entre o Hyundai i30 e o Toyota Yaris hatch. Seu desenho é mais convencional do que sua tecnologia.
O interior também é “normal”, para ir acostumando o pessoal aos poucos à novidade. E o acabamento é no capricho, com bancos forrados com couro furadinho (e laterais aveludadas), painel imitando fibra de carbono e volante que agrada as mãos. Não é um carro de luxo, mas de classe média de primeiro mundo, com um materiais que todos os hatches desse porte deveriam ter.
O banco do motorista tem regulagem elétrica, mas falta ajuste de profundidade da direção. De luxo, há uma função para seguir o trânsito automaticamente. Funcionou a até 20km/h — abaixo disso, desligou.
O espaço é bom na frente, razoável no banco de trás e excelente no porta-malas.
Tomara que um dia todos os automóveis sejam uma evolução deste — imagine o quanto a vida de quem mora de frente para a Nossa Senhora de Copacabana ou o Elevado Paulo de Frontin vai melhorar.
FICHA TÉCNICA
Nissan Leaf ZE
Preço: R$ 195mil.
Origem: Inglaterra.
Motor: dianteiro, elétrico, 110kW (149cv) de potência e 32,6kgfm de torque (a 1rpm).
Bateria: de íon-lítio, 40kWh
Transmissão: tração dianteira, uma marcha à frente e uma à ré.
Suspensão: McPherson na dianteira e eixo de torção na traseira.
Pneus: Michelin 215/50 R17.
Dimensões: 4,48m (comprimento), 2,70m (entre-eixos)
Porta-malas: 435 litros
Peso: 1.582kg
Desempenho: 0-100km/h em 7,9s e máxima de 144km/h.
Autonomia: 240km