O despertador toca às 2 da manhã na casa de Paulo Cândido, 41. Ainda na penumbra, ele pega suas coisas, prepara o café, enche a garrafa térmica vermelha, entra no carro e inicia a viagem. De Pires do Rio até Brasília são aproximadamente 270 km, percorridos em quatro horas de asfalto, para chegar ao HUB (Hospital Universitário de Brasília), às 7h. Ao menos duas vezes na semana Paulo faz esse trajeto, ora indo, ora voltando. “Estou no momento mais calmo e sereno da vida”, diz, já esperando que a outra pessoa não vá acreditar.

O goiano é enfermeiro. Simpático e boa prosa, cavanhaque e tom de voz firme, ele aproveita o momento de viagem para curtir o silêncio do caminho e pensar na próxima meta — já que a última foi conquistada em 2019, quando comprou um carro 100% elétrico.

A consciência ambiental acompanhou Paulo desde sempre. Sua adolescência foi vivida em movimentos da juventude da ordem franciscana da Igreja Católica, que propagam o respeito às pessoas e ao meio ambiente. “A chama foi plantada aí e a raiz começou a nascer.”

Sua primeira formação foi em geografia, na UEG (Universidade Estadual de Goiás). Antes da atual rotina, Paulo foi professor. Deu aulas do ensino fundamental ao superior — e vive como ensina. “Não adianta ser professor de geografia e viver só na teoria. Minha vida tem que ser a prática.”

Foi auxiliar de enfermagem antes de fazer o curso universitário e, apesar de ter passado em alguns concursos em Pires do Rio, escolheu cumprir escala em dois locais no Distrito Federal, o HUB e no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) de Paranoá. Mas volta para casa com qualquer folga que apareça.

A casa em que vive com esposa e filha também é ecologicamente consciente: as janelas aproveitam ao máximo a luz solar e melhoram a circulação do ar. O quintal é aterrado e o espaço subterrâneo foi aproveitado para a construção de um tanque que capta a água da chuva – em torno de 60 mil litros -, direcionada aos vasos sanitários, jardim e área de serviço. Energia solar aquece a água captada. Para fechar o ciclo ambiental, só faltava o carro elétrico.

Paulo Cândido, 41, enfermeiro em Brasília e dono de um carro elétrico - Isabella Campedelli/UOL - Isabella Campedelli/UOL
Imagem: Isabella Campedelli/UOL

A morte do petróleo

Em 2010, ao trocar de carro, Paulo conheceu o modelo híbrido e ficou encantado. Mas, na loja, ninguém explicava coisa com coisa. “A maioria dos vendedores não sabe como funciona”, relembra. Mesmo assim, decidiu comprar. Com alguma pesquisa, foi até a concessionária em Goiânia e fez seu primeiro test drive no único modelo elétrico disponível. Ficou apaixonado mas não comprou. A barreira foi o preço. O sonho foi sendo adiado.

Ninguém apoiava Paulo. Sua esposa achava a ideia uma loucura: o carro mais barato ia comprometer R$ 139 mil do orçamento, isso em 2018. Mas a ideia de não agredir o meio ambiente, ao “se libertar” do que chama de “a morte do petróleo”, o custo baixo de manutenção e a economia com abastecimento continuavam a motivá-lo a realizar a compra. Paulo tinha se tornado um especialista no assunto, antes mesmo de ter um carro elétrico.

“Sou de família humilde, sou pobre. Aprendi que o que você quiser, se planejar e trabalhar, é possível. Não existe barreira para nada. Ponho meta e vou.” Em 2019, finalmente conseguiu investir. Vendeu seu antigo carro e pagou o resto no cartão. Foram longos três meses até conseguir levar o carro para casa.

Lição nº 1

O carro chegou e veio acompanhado de perrengue. Foi logo no primeiro dia: Paulo viajaria de Brasília a Goiânia com o carro. Verificou o aplicativo para identificar a localização mais próxima entre os 45 pontos de abastecimento espalhados pelo Distrito Federal, segundo a Abravei (Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores). Escolheu a estação da UnB (Universidade de Brasília), que completa a capacidade de rodagem do carro em quatro horas. Fez as contas: “estava com 220 km. Daqui até lá é 210 km, com 220 dá. Beleza, vamos embora”.

Acostumado com o carro antigo, ligou o ar, pisou fundo e, ao chegar em Abadiânia (GO), percebeu que estava com 15 km de autonomia. Faltava chão e não existia posto de recarga no caminho. O único “corredor verde” do país, caminho em que se podem encontrar postos de abastecimento, fica entre o litoral de São Paulo e Assunção, no Paraguai. Encostou no restaurante Route 060, conversou com o dono, que emprestou uma tomada, uma extensão e Paulo esperou o carro carregar por seis horas.

Paulo Cândido, enfermeiro em Brasília e dono de um carro elétrico - Isabella Campedelli/UOL - Isabella Campedelli/UOL
Imagem: Isabella Campedelli/UOL

Perto de completar um ano de uso do carro, Paulo já sabe que na estrada não pode andar a mais de 80 km/h em subidas. Deve aproveitar o embalo das descidas para acelerar um pouco mais e ir a 100 km/h, no máximo. Anda com um kit para recarga, que inclui extensão, adaptadores e tomadas específicas. “O carro elétrico no Brasil é urbano, não é de viagem, em função da falta de autonomia e da baixa infraestrutura. Se o Brasil inteiro tivesse o que Brasília tem? Uau! Estaríamos no paraíso, mas não tem.”

Por esse motivo, tem de planejar. Em média, na capital, ele se desloca 20 km por dia. Como Paulo trabalha por muitas horas na linha de frente da covid-19, em postos de testagem rápida e agora nos pontos de vacinação, aproveita esse tempo para fazer a recarga do carro nas estações gratuitas da cidade. Em sua quitinete, no Grande Colorado, aproveita os momentos de sono entre os intervalos do plantão para reabastecer. Adaptou a fiação do local com um fio mais grosso que puxou até a sua vaga, em uma tomada. Assim, a recarga é um pouco mais rápida e a conta de energia sobe R$ 21 reais. A tomada comum, no seu caso, gastaria 15 horas para chegar a 300 km de autonomia. Em sua casa, em Pires do Rio, fez o mesmo processo de mudanças para conseguir manter o planejamento do carro.

O enfermeiro Paulo Cândido, que tem um carro elétrico - Isabella Campedelli/UOL - Isabella Campedelli/UOL
Imagem: Isabella Campedelli/UOL

Grandes mudanças

Acelerado desde a infância, Paulo vive hoje no tempo do carro. Por alguns anos foi motoqueiro. Era dono de um modelo estradeira, acolchoado. Chamava a atenção. Um acidente, em que ele foi vítima, lhe arrancou a perna esquerda — com ela, foi embora a vontade de andar sob duas rodas. Preferiu a prudência à adrenalina, agora pisando no chão com um pé direito e outro de prótese.

A fatalidade não o impede de dirigir. Segundo ele, a adaptação ao carro elétrico tem mais vantagens que desvantagens. “A economia em combustível compensa. Em seis anos eu pago o carro”, pondera. Além disso, juntando todos os valores economizados com a mudança de transporte, Paulo conseguiu aumentar o sistema de energia solar em sua casa, comprou armários, pôs blindex em alguns cômodos e até banheira. “É, sobrou alguma coisinha, vivo agora com mais conforto”, disse, como quem acaba de fazer uma descoberta.

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here