Zeca Chaves

11/09/2020

Os fabricantes estão vendendo a ideia de que em breve o mundo terá um automóvel que vai voar como avião ou helicóptero. Entenda por que isso não acontecerá


O primeiro misto de carro e avião nasceu nos anos 40: o Convair 118 caiu só por causa da confusão do piloto (Foto Wikipedia)

Você vai até a garagem de casa, dá a partida no seu carro voador, decola em direção ao trabalho e chega ao escritório 10 minutos depois. Dá até para tomar um cafezinho com calma, afinal a viagem levou bem menos que os 50 minutos que você costumava fazer com um automóvel tradicional.

Este é o sonho do carro voador que nos é vendido por empresas como Toyota, Hyundai, Uber, Embraer ou Airbus. Desculpe acabar com esse sonho, mas é hora de acordar e descobrir por que essa realidade não será possível. E o problema não é a tecnologia. O buraco é mais embaixo.

É bom deixar claro que não é de hoje que a humanidade sonha com um veículo que possa rodar nas ruas e voar pelos céus. Em 12 de julho de 1946, a fabricante americana de foguetes e aviões Convair colocava no ar o Model 116. Nada mais era do que uma cabine dotada de rodas e presa a um par de asas.

Após 66 voos bem-sucedidos, veio a versão melhorada Model 118. Mas no voo inaugural, em 1947 (na foto acima), o veículo acabou caindo por um detalhe quase cômico. O piloto confundiu os marcadores de combustível (havia dois motores, um para voar e outro para rodar) e ficou sem gasolina.

Por sorte, o piloto sofreu pequenos ferimentos, mas o sonho do carro voador saiu bem machucado. A previsão era vender 160.000 unidades no primeiro ano de produção, mas o projeto foi cancelado depois do acidente.


Combinação de um Ford Pinto com um Cessna, o AVE Mizar terminou em tragédia (Foto Reprodução)

A ideia de unir automóvel e avião retornaria em 1973. Outra companhia californiana, a AVE, teve a ideia de soldar a parte traseira de um Cessna Skymaster em um Ford Pinto e o batizou de Mizar. Dessa vez a experiência terminou em tragédia. Um ano antes de entrar em produção, a estrutura da asa dianteira se soltou num voo-teste, matando os dois sócios da empresa. De novo, o sonho foi enterrado.

Uma companhia fundada em 2006 em Massachusetts, Estados Unidos, decidiu fugir das adaptações e fez um projeto a partir do zero, criando um perfeito híbrido. A Terrafugia idealizou o Transition, um modelo com asas dobráveis que poderia rodar legalmente numa rodovia, atingindo 110 km/h no asfalto ou 185 km/h no ar, por meio de um único motor de avião.


O Terrafugia Transition tem asas dobráveis, que ficam recolhidas verticalmente quando precisa rodar em estradas (Foto Divulgação)

Após o voo inaugural de 2009, a Terrafugia divulgou que a entrega da primeira unidade ao público ocorreria em 2011. Já se passou quase uma década e tudo o que existe de concreto são só os dois protótipos de teste.

A nova fase do carro voador

Hoje vivemos uma nova fase do carro voador, muito mais promissora. Grandes companhias do setor automobilístico (Toyota, Hyundai, Porsche, Geely), aeronáutico (Airbus, Embraer) ou de transporte (Uber) estão apostando alto na tendência.

A receita é quase sempre a mesma: motores elétricos, com asas e hélices, pouca autonomia (até 100 km), velocidades que vão de 100 km/h a 320 km/h e condução autônoma (no futuro deverão funcionar sem piloto). Como são projetados para decolar como um helicóptero, eles são chamados de eVTOL, acrônimo em inglês para “veículo elétrico de decolagem e pouso na vertical”.

Antes de falarmos dos problemas, vou deixar claro que esses projetos não são apenas conceitos – muitos estão até em fase de testes. Não há dúvidas que eles vão entrar em operação. Até porque o desafio não é a tecnologia. A questão é como eles vão funcionar no dia a dia, como será seu uso na vida real. Afinal, como qualquer engenheiro sabe, na prática a teoria é outra.

Por que não vai dar certo

Deixando de lado as dificuldades técnicas (e são muitas), o conceito idealizado do carro voador vai naufragar por três razões.

Em primeiro lugar, temos a questão da habilitação. O motorista do futuro que quiser comprar um desses carros voadores terá de passar por um processo de certificação não muito diferente de um piloto de avião. Portanto, vai pesar no bolso e exigirá uma dose enorme de tempo e esforço.

A seguir, há a autorização do voo. O dono de um veículo voador não pode simplesmente decidir sair de casa e ir para o trabalho. Assim, como qualquer aeronave, o condutor vai precisar de um plano de voo e seguir rotas predeterminadas dentro das cidades. Exatamente como acontece hoje com um helicóptero. A diferença é que essas novas aerovias terão que dividir espaço com as rotas de helicóptero já existentes.


A nova geração chamada de eVTOL: os projetos de Embraer, Hyundai/Uber (ambos no alto), Toyota e Airbus (Fotos Divulgação)

Também será necessário ter uma infraestrutura mínima para receber essas aeronaves, como se fosse um heliponto. Tanto na casa do “motorista” como no seu local de trabalho. E, como são veículos elétricos, eles vão exigir um sistema de recarga para essas baterias.

Os defensores do eVTOL argumentam que, assim como os carros autônomos estarão em breve nas nossas ruas, esses automóveis voadores também poderão fazer suas viagens sem piloto.

Como eu já escrevi em outra coluna, os carros autônomos vão demorar muito mais do que se imagina. O jornal inglês The Guardian previu em 2015 que haveria 10 milhões deles no mundo em 2020. No ano seguinte, o site Business Insider fez a mesma previsão.

Chegamos a essa data e nada mudou. Não somente ninguém faz ideia de quando começarão a vender a primeira versão comercial, como não paramos de ouvir fabricantes de automóveis dizendo que isso está mais difícil do que eles esperavam. O que só revela como a condução autônoma é mais complexa do que parecia. Além do aspecto técnico, temos a barreira da viabilidade econômica e da aceitação do público.

O desafio do voo autônomo

Isso me faz lembrar que recentemente a Porsche Consulting divulgou um estudo dizendo que em 2035 teremos voando pelo mundo cerca de 23 mil unidades de eVTOL. Pode ser, mas só se for com um piloto dentro do cockpit. E vamos lembrar: quanto mais peso, menor a autonomia da bateria – e menor o lucro da empresa que opera o veículo.

Se depender da tecnologia autônoma, os fabricantes terão alguns desafios pela frente. Se um automóvel sem motorista sofrer uma pane no sistema eletrônico, o computador pode mandar o veículo parar assim que possível. Numa aeronave, a situação é bem mais grave. Não dá para pousar em qualquer lugar numa grande metrópole.

Mesmo nos modernos e caríssimos jatos comerciais (um Boeing 747-8 custa mais de US$ 400 milhões), as companhias aéreas sequer trabalham na possibilidade de voar sem pilotos. Os riscos envolvidos são grandes demais. Então por que devemos pensar que será mais simples numa aeronave desenvolvida para ser muito mais barata e extremamente leve?

Mesmo que tudo isso fosse contornável, as pessoas vão entrar num veículo voador sem piloto? Vão todos confiar sua vida a um computador? Pesquisas recentes nos EUA e no Brasil apontaram que 71% e 74%, respectivamente, não teriam coragem de andar num carro autônomo. Para uma aeronave certamente esse número seria ainda maior.

Portanto, quem espera que os futuros eVTOL vão revolucionar o conceito de carro voador, pode esquecer. Será uma grande evolução sim, mas no setor de táxi aéreo, ocupados pelos pequenos aviões e helicópteros.

Então, vamos parar de chamá-los de carro voador e usar a definição correta: drones para transporte de pessoas ou helicópteros elétricos. E pode dar adeus ao sonho de ir da casa ao trabalho voando em 10 minutos.


E você, o que acha? Deixe seus comentários desta coluna ou envie sugestões para as próximas: [email protected]; ou visite minha página no LinkedIn.

Consultor do mercado automobilístico e jornalista especializado na área há 26 anos, Zeca Chaves é colunista do AUTOentusiastas e do portal Automotive Business; foi editor do caderno Veículos da Folha de S.Paulo e trabalhou por 19 anos na revista Quatro Rodas, onde foi redator-chefe.

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