Um novo estudo publicado na revista científica Nature joga põe em sérias dúvidas a viabilidade dos carros elétricos a célula de combustível (FCEV).
FCEV é uma tecnologia que compete com elétricos a bateria (BEV). Consiste em usar uma célula de combustível que converte quimicamente hidrogênio em eletricidade. Alguns fabricantes (não muitos) apostam no potencial porque tem duas vantagens: peso e facilidade de abastecer. Hidrogênio é um material físico e se abastece como a gasolina, em segundos. Dependendo de como é produzido, não emite gases-estufa (ainda que a maior parte em circulação hoje derive do processo do petróleo).
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Infelizmente, pelo estudo, os segundos jamais alcançarão a eficiência dos primeiros. Dizem, com todas as letras, que é “improvável que a tecnologia do hidrogênio desempenhe um papel importante no transporte rodoviário sustentável”. Colocação esta que dá nome ao artigo publicado.
A eletricidade e o hidrogênio, conforme aponta o estudo, são os dois principais atores em energia para um futuro de baixo carbono. O hidrogênio, importante dizer, é e continuará sendo vital na indústria, na navegação e nos combustíveis sintéticos de aviação. Mas aí não é elétrico: funciona queimando hidrogênio (que é extremamente inflamável) mesmo, com motores a combustão interna ou a jato movidos a hidrogênio no lugar de diesel, combustível bunker e querosene.
Mas para as necessidades do transporte rodoviário, os veículos elétricos a bateria, tanto no transporte de passageiros quanto no de carga, merecem mais foco.
Ciclo energético
A maioria das montadoras está se dedicando aos carros elétricos a bateria. Entretanto, há aquelas que ainda se dedicam aos motores a hidrogênio, como Toyota, Hyundai e GM. Como traz o site Electrek.co, alguns dos maiores programas FCEV do mundo, como o Toyota Mirai e o Hyundai Nexo, não conseguiram obter nenhuma reação depois de anos e bilhões investidos.
Além disso, há o fato do ciclo energético completo dos carros a hidrogênio ser muito menos eficiente (três vezes menos eficiente, como mostra o gráfico abaixo de um estudo publicado no Phys.org, agregador de notícias online de ciência).
Muito mais carros elétricos que a hidrogênio
Em uma seção específica sobre os carros, o estudo na Nature já expõe uma predominância dos veículos BEV sobre os FCEV. Por exemplo, enquanto globalmente, no início de 2021, havia cerca de 25 mil carros de célula de combustível de hidrogênio, são esperados cerca de 15 milhões de veículos elétricos e híbridos plug-in (PHEV) nas estradas pelo planeta.
Isso sem contar que mais de 90% dos automóveis FCEV estão localizados em apenas quatro países: Coreia, Estados Unidos, China e Japão, com apenas dois modelos disponíveis em fabricantes globais. Em compensação, quase todas as montadoras já vendem veículos elétricos e híbridos plug-in, com mais de 350 modelos disponíveis globalmente.
Estrutura de abastecimento
Quando se coloca em foco a questão sobre abastecimento de célula de combustível e carregamento elétrico, há outro nível de superioridade para os BEVs. O estudo lembra que os carros FCEV não podem ser abastecidos em casa e precisam de uma rede de postos de abastecimento com opção de hidrogênio. Tendo em vista que há cerca de 540 estações de hidrogênio operando globalmente (contra mais de 10 milhões de postos de recarga elétrica), podemos entender que existe um problema de oferta considerável.
Já os veículos elétricos a bateria obtêm sua eletricidade a partir da rede elétrica, doméstica ou pública. Fora a opção que o motorista possui em casa, em 2020, cerca de 1,3 milhão de carregadores públicos estavam em operação globalmente, com cerca de um quarto sendo carregadores rápidos (pelo menos 22 kW de potência). Uma ilustração do site InsideEVs ajuda a entender a complexidade entre as duas formas de estrutura:
Mais recentemente, os operadores de pontos de carregamento começaram a construir carregadores rápidos de alta potência com mais de 150 kW, normalmente até 300 kW. Na Europa, que pretende proibir todos os novos carros com motor de combustão a partir de 2035, já há mais de 1 mil pontos de carregamento a 300 kW em operação.
Alcance
Como traz o estudo, os veículos de célula de combustível se mostravam ideais para viagens frequentes de longa distância (a maior densidade de energia do hidrogênio comprimido superava os limites da bateria dos carros elétricos). Os BEVs tinham alcance limitado de menos de 150 km – e ainda por cima, seu carregamento demorava algumas horas, enquanto a capacidade de reabastecer os FCEVs exige apenas alguns minutos.
Entretanto, os veículos elétricos a bateria agora oferecem cerca de 400 km de autonomia no mundo real. Isso sem levar em consideração modelos como o Lucid Air e seus 836 km com uma carga e conceitos recentes que prometem 1 mil km de autonomia, como o Vision EQXX da Mercedes-Benz e o Fresco XL, da startup norueguesa Fresco Motors. De qualquer forma, a mais nova geração BEV usa baterias de 800 V, que podem ser carregadas por uma autonomia de 200 km em cerca de 15 minutos.
Caminhões elétricos comerciais não darão chance para o hidrogênio
Conforme traz o estudo, existem cerca de 30 mil caminhões elétricos a bateria em estoque globalmente – e mais de 90% deles estão na China. Esses veículos exigem maior potência de carregamento para uma recarga completa, e não há infraestrutura dedicada para eles atualmente.
Os caminhões elétricos de célula de combustível, por sua vez, só foram operados em testes (de dois fabricantes) até o momento e ainda não estão disponíveis comercialmente. Algumas empresas de caminhões, como a Nikola Motors, afirmam que terão semi-caminhões FCEV de produção disponíveis mais cedo do que em 2027 (2023-24), mas mesmo assim, o fabricante está se movendo lentamente para veículos elétricos a bateria.
Estímulos à eletricidade nos caminhões
O estudo observa que, com o novo padrão de carregamento de megawatts para caminhões elétricos a bateria e os avanços da tecnologia nesse segmento, a próxima geração de caminhões elétricos provavelmente deixará para trás os veículos movidos a hidrogênio com células de combustível. Estimulados por metas ambiciosas de redução de dióxido de carbono para veículos pesados, muitos fabricantes anunciaram novos modelos de caminhões elétricos (e versões revisadas de modelos elétricos, como o Volvo VNR Electric.
Mais de 100 modelos foram anunciados para caminhões médios (3,5 a 12 toneladas de peso bruto do veículo) e mais de 50 modelos para caminhões pesados (peso bruto do veículo superior a 12 toneladas). Esses caminhões deverão ser a primeira geração de caminhões elétricos a bateria, com autonomia proposta de 250 km em caminhões médios e de 300 a 350 km em caminhões pesados.
Outro ponto levantado no estudo diz que vários fabricantes de caminhões, bem como fornecedores de células de combustível e infraestrutura, uniram forças e anunciaram uma meta de 100 mil caminhões FCEV nas estradas europeias até 2030. Um dos exemplos recentes nesse sentido é a Daimler Trucks se unindo à TotalEnergie para a criação de um ecossistema de abastecimento de hidrogênio na Europa. Entretanto, os veículos elétricos a bateria de segunda geração já são esperados comercialmente e em operação até lá.
A janela de oportunidade para estabelecer uma participação de mercado relevante para carros a hidrogênio está praticamente fechada, segundo o estudo publicado na Nature. Para caminhões então, o segmento FCEV possui custos operacionais mais relevantes do que para carros. Ou seja, parece ser necessário decidir com rapidez se o nicho de caminhões elétricos de células de combustível é grande o suficiente para sustentar o desenvolvimento da tecnologia de hidrogênio, ou se é hora de reduzir perdas e concentrar esforços em outros lugares.
Imagem: GAPred/iStock
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