As montadoras já viram dias melhores. No primeiro semestre de 2021, a produção brasileira somou 1,15 milhão de veículos, 22% abaixo do que foi fabricado nos primeiros seis meses de 2019, antes da pandemia, segundo a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores). Em 2020, o setor já havia amargado a produção mais baixa em 17 anos, 2 milhões de unidades.
O novo coronavírus —que primeiro deixou todos dentro de casa, em um esquema de distanciamento social, e depois bagunçou a cadeia de fornecimento de semicondutores, essencial para esta indústria—impulsionou um cenário que já era ruim.
A ansiedade para tirar carteira de habilitação ao fazer 18 anos já não pertence às novas gerações de consumidores, interessados mais em usufruir um serviço do que ter um bem. Vem daí o crescimento do uso de aplicativos de transporte.
Todo este cenário global de desaceleração, somado aos problemas locais, levaram a decisões difíceis para as montadoras no Brasil. A Ford, por exemplo, optou por encerrar a produção no país e mudar o foco do negócio, investindo na importação de modelos com maior valor agregado, entre utilitários esportivos e veículos comerciais.
Ainda assim o argentino Pablo Di Si, presidente da alemã Volkswagen na América Latina, consegue enxergar dois faróis no horizonte, dando um novo rumo para a indústria automobilística. O primeiro são os carros movidos com energia menos poluente, com a combinação de eletricidade e etanol.
O segundo farol vem das assinaturas de veículos, uma modalidade em que o consumidor não precisa comprar um carro zero-quilômetro, mas paga mensalmente para usá-lo durante um, dois ou três anos. Isso sem se preocupar com os custos e burocracias que acompanham a compra de um carro: documentação, IPVA, seguro, manutenção, incluídos no valor mensal. Não se pode chamar de “barato”, mas é menos trabalhoso.
“Demoramos, mas conseguimos chegar a um modelo em que a conta fecha para todos: montadora, concessionários e clientes”, afirma Di Si, para quem essa modalidade tem chances de crescer nos próximos anos no Brasil, chegando a 30% do faturamento.
Mas o que mais consome a atenção do executivo no momento é garantir um lugar ao sol para a América Latina nos planos de médio e longo prazos da Volkswagen. Nos próximos seis anos, a montadora alemã vai lançar 130 veículos mundo afora, sendo 70 carros elétricos e 60 híbridos. Os projetos de eletrificação do grupo envolvem investimentos da ordem de 73 bilhões de euros nos próximos anos.
“O grupo tem o compromisso de lançar carros elétricos em nível global. Mas para a América Latina essa realidade ainda não é viável, não existe infraestrutura de abastecimento”, afirma Di Si. “Aqui, porém, existe o etanol, uma alternativa excelente”.
No início de julho, Di Si apresentou para o conselho da Volkswagen um projeto em defesa dos biocombustíveis para o futuro da indústria automobilística. Conseguiu convencer os alemães a implantar, no Brasil, um centro de pesquisa e desenvolvimento para soluções tecnológicas baseadas em etanol e outros biocombustíveis.
Mas a decisão poderia ter ocorrido há tempos: a filial brasileira trabalha em alternativas ao petróleo desde o fim da década de 1970, época em que o programa Proalcool estimulava esse tipo de trabalho.
A ideia de agora é trazer os motores híbridos desenvolvidos na Europa para que a equipe de engenharia da Volks no Brasil crie, principalmente, versões adaptadas ao etanol e possa atender não só o mercado brasileiro, mas os demais emergentes.
Di Si apresentou virtualmente o projeto do Brasil para o grupo do conselho de administração da Volks. Viajar cada vez menos para a Alemanha é um dos seus objetivos na vida pós-pandemia. “As reuniões funcionam bem remotamente”.
A Anfavea estima que a falta de semicondutores tenha impedido a produção de até 120 mil veículos no primeiro semestre —e que não há expectativa de normalização do fornecimento até o segundo trimestre de 2022. O quanto isso afeta a Volkswagen?
Nós tivemos algumas paralisações da produção e hoje estamos com duas das nossas quatro fábricas do país trabalhando apenas em um turno —São Bernardo do Campo e Taubaté [ambas no interior paulista]. O motivo é algo positivo: está havendo uma reação das economias chinesa e americana. Há um consumo muito alto de computadores, celulares e games, e também de veículos —o mercado da China cresce muito. Enquanto isso, a indústria de semicondutores tem uma capacidade limitada. Estamos vivendo isso desde outubro do ano passado. É uma batalha diária, esperamos que em algum momento haverá uma estabilização.
O que mais mudou no perfil do consumidor da Volkswagen desde o início da pandemia?
Ele se tornou muito mais digital, sem dúvida. Acredito que a compra online, sem que o consumidor tenha que ir até uma concessionária, será uma prática cada vez mais comum. E nós nos preparamos para isso. Lançamos uma nova loja online, a VW e-store, em parceria com a rede de concessionárias, em que é possível fechar toda a compra do veículo pelo site. Tem cliente que não quer mais ir à loja ver o estoque, assina o financiamento de forma digital.
Também lançamos uma concessionária digital, a DDX – Digital Dealer eXperience. Nesse caso, o cliente pode conhecer todo o nosso portfólio por meio de realidade aumentada, usando óculos 3D, e encomendar o carro do seu jeito. E se o cliente não puder ir à concessionária, poderá ter acesso a tudo isso pelo tablet do vendedor, que vai até a sua casa ou trabalho.
As locadoras de veículos e também as montadoras criaram o serviço de carro por assinatura. Já é uma adaptação ao perfil das novas gerações, mais interessadas em usufruir um bem do que em tê-lo?
Criamos o programa de carro por assinatura no ano passado, em parceria com a Volkswagen Financial Services. Demoramos, mas conseguimos chegar a um modelo em que a conta fecha para todos: montadora, concessionários e clientes. É um novo modelo de negócio, que oferece mais conveniência e mobilidade para quem não quer ser dono do veículo.
E o melhor é que o cliente faz tudo online: selecione o modelo, a cor, o tempo de contrato, faz o cadastro, envia os documentos, recebe o contrato por email e faz a assinatura digital. Retira o carro onde escolher. Ainda não dá para fazer uma previsão de quanto a assinatura vai responder das vendas totais, mas é natural um crescimento exponencial nos próximos anos, pode representar de 20% a 30% do faturamento.
É uma possibilidade de o cliente experimentar o carro antes de comprá-lo, ter uma diversidade maior de opções porque, afinal de contas, ter um carro é um investimento alto. Você pode querer um T-Cross para ir para a praia ou o campo, ou um Virtus andar pela cidade. Antes não havia essa possibilidade de variar de modelo.
Na Europa, a Volkswagen já trabalha com o sistema de carro compartilhado. Como funciona?
É o WeShare. Os carros estão em diferentes pontos da cidade e você tem uma assinatura da marca. Pode abrir o carro a partir do aplicativo no celular. É uma comodidade ainda maior para o consumidor, aumenta muito a mobilidade. Nem sempre o Uber funciona para todas as ocasiões, às vezes eu posso preferir ficar com o veículo um tempo. Posso trocar de carro três ou quatro vezes ao mês.
Você mencionou que comprar um carro é um alto investimento. No Brasil, é cada vez menor o número de lançamentos e as vendas de carros populares, que estavam no auge uma década atrás. Cresce a venda de SUVs, com preço médio acima dos R$ 80 mil. Por que esse movimento acontece?
Os carros vêm se tornando cada vez mais seguros, com mais tecnologia, e isso têm um custo. As empresas precisam realinhar suas margens de lucro, tendo em vista a queda de volume. Hoje a venda de SUVs está explodindo, enquanto a venda de sedãs sofre.
É verdade que cada vez que a taxa Selic aumenta, aumenta a pressão do custo do crédito para o cliente final. Mas o consumidor vem mudando suas preferências também. Nossas pesquisas indicam que o que mais conta hoje para os brasileiros é o design, em segundo a conectividade, e em terceiro lugar a segurança.
Antes, o preço era o número um e a segurança estava entre os 10 primeiros itens. Tudo isso conta no preço final. E o brasileiro adora carros! É atento aos detalhes, ao design. Acreditamos que existe espaço para crescer: a cada 10 consumidores, 6 têm carro. Estamos negociando há mais de 20 anos a troca da frota nacional.
Essa troca vai ocorrer por meio do carro elétrico?
O futuro da frota é o carro híbrido elétrico, que vai rodar também com etanol. Isso é fundamental em um país continental como o Brasil, que ainda não tem infraestrutura para ter um parque de carros elétricos.
Ninguém vai querer investir em um carro elétrico, que ainda tem um custo bem maior que o dos convencionais, para ficar rodando apenas na cidade. A Volkswagen está liderando a transformação para a mobilidade sustentável e vamos nos tornar a marca número 1 em mobilidade elétrica. Aqui na América Latina, começamos com Golf GTE, híbrido plug-in, em 2019.
Mas o sucesso dessa estratégia depende da infraestrutura de carregamento. No ano passado, inauguramos uma série de 30 eletropostos em parceria com a EDP dentro do projeto Plug&Go, para incentivar que as pessoas se sintam seguras em optar por um automóvel híbrido ou elétrico nos próximos anos. A recarga é gratuita e as estações estão localizadas em um corredor de 2,5 mil quilômetros, que vai do Espírito Santo a Santa Catarina.
Nos próximos cinco anos, vamos lançar seis veículos híbridos flex no Brasil. A parte fácil é lançar o carro. O difícil é construir todo o ecossistema para o abastecimento. Até pouco tempo atrás, não havia sequer regulação na Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] prevendo a mobilidade elétrica.
Pablo Di Si, 51
Formado em Contabilidade pela Northwestern University (EUA) e em Administração, com especialização em Finanças, pela Loyola University of Chicago (EUA), Pablo Di Si iniciou sua carreira no grupo Volkswagen em 2014, como principal executivo de operações e finanças da Volkswagen na Argentina. Anteriormente, ocupou posições-chave na FCA (Grupo Fiat Chrysler) nos Estados Unidos e no Brasil. Di Si assumiu a presidência da Volkswagen América Latina em outubro de 2017.
Raio-x Volkswagen
Fundação: 1937 (em Wolfsburg, Alemanha)
Fábricas: São Bernardo do Campo (SP), Taubaté (SP), São Carlos (SP) e São José dos Pinhais (PR)
Funcionários: 13.000 (2020)
Receita líquida: R$ 25,9 bilhões (2019)
Principais competidores: Stellantis, GM, Ford