Junho de 1980. Há 40 anos, quando muito pouco ou nada se falava sobre carro elétrico no mundo, o empresário João Augusto Conrado do Amaral Gurgel construiu uma fábrica cuja finalidade era montar veículos movidos a eletricidade em Rio Claro, interior de São Paulo.
O projeto de um veículo do gênero há quatro décadas foi apenas uma das ideias extravagantes do engenheiro mecânico e eletricista, que mostrava inconformismo desde cedo. Diz a lenda que, aos 23 anos, quando estudava engenharia na Escola Politécnica de São Paulo, em vez do projeto de um guindaste, pedido pelo professor, Gurgel apresentou um pequeno veículo com motor de dois cilindros, batizado de Tião. Como resposta, além da quase reprovação, ouviu do professor que “carro não se fabrica, se compra”.
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De certo modo, o mestre tinha razão. E, a partir de 1969, compradores de automóveis passaram a contar com mais uma opção. Nascia a Gurgel Motores, para fabricar carros, não guindastes. A ideia era fazer um automóvel 100% nacional. Em oposição às multinacionais, ao longo de sua trajetória o engenheiro dizia que sua empresa era “muito nacional”.
O primeiro carro foi uma espécie de bugue com mecânica Volkswagen, batizado de Ipanema (abaixo). Ao fazer um veículo de recreação destinado ao uso fora de estrada, Gurgel evitava o confronto direto com as marcas já estabelecidas no País.
Carroceria do Gurgel utilizava plástico e fibra de vidro
Em 1972, Gurgel lançou o Xavante XT, mais tarde rebatizado de X-12, e mais tarde ainda (1988) transformado em Tocantins. Uma das características do jipinho era o chassi feito de um material batizado de plasteel, mescla de plástico e aço. A carroceria utilizava plástico e fibra de vidro. Outra inovação para a época era o sistema batizado de Selectraction. Era um sistema tão rudimentar como eficaz, que bloqueava uma das rodas de tração para evitar patinação sobre piso de baixa aderência. O X-12 se tornaria o Gurgel de maior sucesso, e o mais conhecido até hoje.
Três anos mais tarde, em 1975, as instalações da empresa, em São Paulo, já não comportavam a expansão. Foi quando a fábrica se transferiu para Rio Claro, num terreno bem mais amplo, que cinco anos mais tarde abrigaria também a fábrica do carro elétrico. A gestação do modelo a eletricidade, no entanto, começou no mesmo ano da mudança para o interior, com a apresentação do protótipo Itaipu E150. Gurgel era um crítico do carro a álcool. As coisas nessa época iam tão bem que, em 1979, a empresa participou do Salão de Genebra, um dos mais importantes do mundo.
Após cinco anos de desenvolvimento, em 1980 a Gurgel lançou o E150, seguido, em 1981, pelo Itaipu E400. O modelo foi apresentado na versão furgão (abaixo), mas na sequência veio a picape, em versões de cabine simples e dupla. O alto peso, por causa das baterias, e a baixa autonomia acabaram sepultando o projeto.
Em 1982, ele abandonou o nome da usina hidrelétrica e foi rebatizado de G800. O motor passou a ser a combustão, fornecido pela Volkswagen.
Carajás tinha motor na frente e câmbio atrás
O jipe Carajás, de 1984, foi o primeiro Gurgel com motor dianteiro. O modelo utilizava o propulsor 1.8 do Santana. Mas havia um problema. Apesar do motor na frente, o câmbio ficava na traseira, o que elevava o tempo de troca de marchas.
As dimensões do Carajás contrastavam com o Xef, minicarro de apenas 3,12 m de comprimento. Uma de suas excentricidades eram os três bancos dianteiros. Outra, o fato de o modelo ter para-brisa e vidro traseiro exatamente iguais.
O Xef não teve muito êxito comercial, mas Gurgel estava determinado a fazer um carro urbano e econômico. No dia 7 de setembro de 1987, o empresário apresentou o protótipo batizado de Cena, iniciais de Carro Econômico Nacional. Tinha motor de dois cilindros refrigerado a água de 650 ou 800 cm³. O lançamento ocorreu no ano seguinte, com novo nome: BR-800 (abaixo). Isso porque a nomenclatura original causava confusão com o nome do piloto Ayrton Senna, que aparentemente não gostou da associação.
‘Ford’ brasileiro
Uma peculiaridade do pequeno modelo é que ele inicialmente só estava disponível para quem adquirisse ações da Gurgel Motores S/A. No lançamento da campanha, o empresário se comparava a ninguém menos que o fundador da Ford. O mote era: “Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?”.
Cada acionista pagou o equivalente a US$ 7 mil pelo carro mais US$ 1.500 pelas ações. O valor era inferior ao dos modelos mais baratos da concorrência, porque o governo havia concedido ao carro uma alíquota inferior de IPI. Por causa da baixa cilindrada do motor, o BR-800 recolhia 5% de imposto, contra pelo menos 25% dos demais.
No início dos anos 90 a Gurgel lançou o Motomachine (abaixo), um carro ainda menor que o BR-800. Tinha apenas dois lugares e portas transparentes.
Mas as coisas começaram a se complicar para a empresa quando o então presidente Fernando Collor de Melo isentou de IPI todos os carros com motor abaixo de 1.000 cm³. Com isso, logo surgiram opções maiores, mais confortáveis e potentes que o BR-800, caso do Fiat Uno Mille.
Como se esse golpe já não fosse suficiente, outro duro baque na Gurgel foi a abertura das importações. Como resultado, opções como o jipe russo Lada Niva desembarcaram por aqui custando menos que os modelos da marca.
Em 1992, a empresa chegou a lançar o Supermini, evolução do BR-800. Mas no ano seguinte a Gurgel pediu concordata. Em 1994 foi decretada a falência. O empresário morreu em 2009.