Políticos, empresários e trabalhadores do setor automobilístico têm bons motivos para mirarem o ano de 2035 com ansiedade. Esta data está sendo estabelecida como parâmetro por diversos governos nacionais e blocos de países para que sejam implementadas importantes mudanças nas respectivas frotas nacionais, que vão exigir grandes investimentos tanto em tecnologia quanto em infraestrutura.
Em junho deste ano, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que obriga todos os seus 27 integrantes a cortarem as emissões de gases de efeito estufa geradas por automóveis em 100% até o ano de 2035. E alguns países europeus que não integram o bloco debatem datas até anteriores. A Noruega fala em 2025, o Reino Unido, em 2030. 2035 também é a data-limite para que todos os carros vendidos no estado norte-americano da Califórnia sejam do tipo emissão zero, anunciou o governo do estado em agosto passado. Já a China espera que naquele ano metade de seus novos veículos usem fontes energéticas não poluentes.
Os primeiros passos para essa transição já estão em andamento. Diversas são as rotas discutidas, incluindo uma nova geração de biocombustíveis e a nova tecnologia de células a hidrogênio (veja quadro abaixo). Por enquanto, o mercado está apostando bastante na direção dos veículos elétricos. Na China, Europa e em menor medida, nos Estados Unidos – os maiores mercados mundiais de automóveis – a frota deste tipo de veículo já supera 20 milhões de carros, sendo que, em 2018, o número mal superava os 4 milhões, segundo relatório publicado em maio deste ano pela International Energy Agency. O mesmo relatório mostrou que, em 2021, os carros elétricos corresponderam a 8% do total de novos veículos que chegaram ao mercado mundial de veículos, num total de 6.5 milhões de unidades.
Porém, há diferentes tipos de carros elétricos à venda e em desenvolvimento, e em alguns casos eles empregam mais de um tipo de propulsão. Alguns modelos, denominados pelos estudiosos de Hybrid Eletric Vehicles (HEV) adotam uma tecnologia híbrida, combinando de formas diferentes um motor a explosão e um motor elétrico. O Mild Hybrid Eletric Vehicle é um híbrido que recorre bem menos ao motor elétrico que possui, e que ajuda basicamente a reduzir o uso de combustível fóssil pelo veículo, mas sem substituí-lo. Já os Batery Eletric Vehicles (BEV) demandam a existência de uma rede de pontos de reabastecimento de suas baterias (veja abaixo).
Diante de um mercado que se transforma em velocidade inédita, e no qual parece haver pouca janela para debates mais amplos, é necessário que os diferentes atores que compõem o setor automotivo brasileiro dialoguem entre si e com o poder público para planejar qual o caminho a ser seguido, considerando seus interesses, características e potencialidades. Desenvolver essa reflexão é o objetivo de um grupo de representantes do poder público, dos sindicatos, das montadoras de veículos, do setor sucroalcooleiro e da universidade que em conjunto vêm realizando uma série de eventos denominada Híbrido Etanol: O Motor do Futuro, que já contou com edições em três cidades do interior de São Paulo.
Como o próprio nome sugere, o movimento busca colocar o etanol no centro do processo de renovação da frota no país. O combustível produzido a partir da cana-de-açúcar tem “a cara do Brasil”, diz Rodrigo Costa Marques, que é docente do Instituto de Química da Unesp, no câmpus de Araraquara, e um dos líderes da iniciativa.
Características do Brasil trazem desafios para carros elétricos
Marques coordena o CEMPEQC (Centro de Monitoramento e Pesquisa da Qualidade de Combustíveis, Biocombustíveis, Petróleo e Derivados) que atua principalmente no monitoramento da qualidade de combustíveis e dos postos e na formação de recursos humanos para o setor, entre outras atividades. Por conta dessa expertise, o CEMPEQC foi convidado para representar a academia e as universidades na organização e na discussão sobre um futuro sustentável para a mobilidade que inclua o etanol.
“O debate propõe que governo, empresas, academia se juntem para criar condições para se investir nessas tecnologias. Se a gente não tiver uma força-tarefa de mobilização, de investimento, de política pública, como ocorreu no passado com o programa Proálcool, vamos ficar patinando”, diz Marques. A fala é uma referência ao Programa Nacional do Álcool, uma iniciativa do governo brasileiro surgida nos anos 1970 que, em um contexto de alta do preço do petróleo no mercado mundial, promoveu a substituição da gasolina pelo etanol no mercado interno. Esse aceno a uma inciativa bem-sucedida no passado está por trás do nome “novo ciclo do etanol”, escolhido pelos organizadores do movimento. “Se não seguirmos por este caminho, daqui a pouco vamos estar importando tecnologia de carro elétrico do Japão ou Europa”, diz Marques.
A existência de uma indústria consolidada do etanol no Brasil é um dos principais argumentos dos defensores da inclusão do combustível nos planos futuros para a mobilidade. Pesa a favor, ainda, o fato de veículos movidos a etanol emitirem até 73% menos CO2 comparado a veículos movidos unicamente a gasolina, o que já faz do Brasil um país em que o setor de transportes tem um peso menor nas emissões de gases de efeito estufa se comparado às economias dos países que priorizam veículos 100% elétricos no seu processo de descarbonização. Enquanto nos Estados Unidos e Europa a porcentagem do setor de transporte no total de emissões de CO2 corresponde a 29% e 23%, respectivamente, no Brasil esse número é de 13%, dos quais 91% têm origem no setor rodoviário.
Para o professor da Unesp, optar por uma política pública que apoie o modelo de carro elétrico que está sendo favorecido na Europa seria um equívoco, dadas as características específicas da realidade brasileira tais como as dimensões continentais do país e a predominância do frete rodoviário no transporte de mercadorias.
“Imagine fazer uma viagem de São Paulo até o Amazonas usando um veículo elétrico que precise fazer paradas para abastecer em uma tomada. Será preciso instalar postos com tomada de voltagens e uma tensão específica para que os intervalos de recarga sejam curtos. Sem isso, se perderá muito tempo recarregando as baterias e atrasando demais uma viagem que hoje pode ser feita em dois dias”, explica Marques.
Ele diz que até a atual dependência do Brasil do transporte rodoviário para o transporte de cargas é produto de erros do passado, quando o Brasil abriu mão do desenvolvimento de sua malha ferroviária para priorizar as rodovias. “Agora a gente está indo para um caminho parecido. Chegou a hora de pensarmos em uma transposição para a tecnologia de mobilidade elétrica, mas a gente não precisa seguir o modelo europeu.”
Uma opção brasileira
Os encontros da série Híbrido Etanol: O Motor do Futuro defendem que o processo de eletrificação da frota de veículos aproveite o combustível produzido a partir da cana-de-açúcar. Atualmente, duas opções despontam como caminhos tecnológicos possíveis para essa transição. A primeira, e mais bem consolidada no mercado, é o uso do etanol em veículos híbridos flex. Nestes modelos, um motor a combustão (movido a gasolina ou álcool) ajuda a recarregar um segundo motor, elétrico, de forma a combinar eficiência e uma menor pegada de carbono, quando abastecido com álcool. Veículos com este perfil, ainda que caros, já estão nas ruas e fazem parte dos planos de montadoras como Toyota e Volkswagen.
A outra opção é a combinação do etanol com veículos movidos a célula a combustível de hidrogênio. Neste modelo, reações químicas fazem com que os átomos de hidrogênio que existem no etanol sejam removidos e aproveitados para abastecer as células a hidrogênio.
A tecnologia dos motores à célula de hidrogênio já existe e está disponível em alguns países. Porém, o hidrogênio usando no abastecimento ainda é produzido a partir de fontes fósseis. “O desafio é desenvolver o carro à célula combustível em que a origem do hidrogênio é o etanol brasileiro”, diz Marques. Para que essa tecnologia seja desenvolvida nas universidades e centros de pesquisa brasileiros, será preciso adotar um planejamento em nível nacional. “É preciso criar incentivos fiscais para agentes da cadeia produtiva que participem desta transposição de tecnologia, elaborar programas de célula a combustível, estimular as indústrias a nacionalizarem as tecnologias, envolver universidades, cooperativas e investir em P&D. Criar uma política pública dedicada ao que a gente chamou de novo ciclo de etanol”, diz Marques.
Erick Silva, dirigente da Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, foi quem teve a ideia de dar início a uma articulação em defesa de um novo ciclo do etanol no Brasil. Silva diz que já há alguns anos a categoria observa a movimentação de outros países em direção aos veículos elétricos, e questiona a viabilidade da adoção desse modelo no país e seus impactos no mercado de trabalho. Segundo a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), a indústria automobilística emprega hoje, direta e indiretamente, cerca de 1,2 milhão de pessoas.
Silva descreve um cenário em que boa parte da nova tecnologia necessária à produção desses carros já viria pronta de fora, e a participação das empresas nacionais na cadeia produtiva cairia. “Eu sou funcionário de uma fábrica de motores a combustão. O veículo elétrico necessita de dois terços do número de peças que um a combustão tem. Então de cara perde-se um terço da mão de obra, seja na cadeia de autopeças, seja na montadora”, argumenta. “Qual seria a dificuldade para que a China exportasse para o Brasil um milhão de conjuntos de baterias, já que está produzindo quase dez milhões? Eles vão ganhar economia de escala e vão desenvolver a indústria deles”, diz.
Silva sustenta que esse modelo de eletrificação da frota em desenvolvimento na China e na Europa faz muito sentido para ambos, pois buscam alternativas para o petróleo como combustível. Mas isso é algo que o Brasil já possui. “Existe uma questão geopolítica e estratégica envolvida no desenvolvimento dos modelos de veículos Nós estamos convencidos de que o melhor modelo para o Brasil é o carro híbrido movido a etanol”, afirma.
A incorporação do etanol no processo de descarbonização da frota, como era de esperar, encontra ressonância no setor sucroalcooleiro. Eduardo Leão de Sousa, diretor executivo da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), explica que os 40 anos de consolidação da indústria estimularam o desenvolvimento de tecnologias relacionadas ao biocombustível, como os veículos flex e, mais recentemente, de pesquisas visando a geração de eletricidade para células de combustível a partir do hidrogênio extraído do etanol. Na visão do dirigente, a consolidação do etanol no processo de descarbonização da frota certamente levaria à necessidade de aumento de produção do setor sucroalcooleiro. Hoje, 1,2% do território brasileiro é ocupado pela cultura de cana-de-açúcar, sendo metade no estado de São Paulo.
Aumentar a produção sem oferecer riscos ao meio ambiente ou competir com a produção de alimentos é um dos desafios do setor, caso este novo ciclo do etanol se concretize. “A expansão deverá ocorrer principalmente em áreas de pastagem degradadas, com a recuperação do solo, e pelo aumento da produtividade ancorado nos avanços tecnológicos”, comenta Sousa. Para isso, argumenta o representante da Unica, é necessário investimentos em inovação, pesquisa e desenvolvimento, bem como políticas claras e de longo prazo, que garantam segurança jurídica e previsibilidade aos investidores. Sousa sugere ainda o fortalecimento de políticas tributárias que reconheçam as externalidades positivas do etanol disponível no Brasil para contribuir na mitigação da crise climática. Atualmente, os veículos elétricos têm desconto nas tarifas de importação, IPI e IPVA.
Eduardo Sousa diz que o etanol já está no radar das montadoras como uma solução viável para o futuro da mobilidade sem carbono. Entretanto, diz, o que se nota da parte dessas empresas é que não existe apenas uma rota tecnológica no horizonte. Atualmente, a Toyota fabrica veículos com quatro tecnologias diferentes para a descarbonização. O etanol está contemplado em linhas de veículos híbridos, que contêm motores elétricos e a combustão, e vem sendo objeto de pesquisa para atuar em veículos movidos a célula de combustível.
“Entretanto, nenhuma dessas tecnologias sozinha será suficiente para resolver a questão da neutralidade de carbono. Para o contexto do Brasil e região, vemos nos híbridos uma ponte para a neutralidade de carbono”, explica Thiago Sugahara, gerente de assuntos governamentais da montadora no país, reforçando os argumentos já citados, como a presença da infraestrutura, os empregos e a baixa emissão, quando se observa todo o seu ciclo de vida.
Em outubro, a Toyota apresentou na Índia o modelo híbrido flex do Corolla, que roda com etanol, gasolina e baterias, produzido em Indaiatuba, no interior de São Paulo, O país asiático é um dos maiores produtores de cana-de-açúcar do mundo e tem se inspirado no Brasil para a adoção de uma nova política energética que estimule o uso de veículos flex, diminuindo assim a dependência do petróleo e descarbonizando sua frota. A Índia produz apenas 18% do petróleo que consome.
Representantes da montadora também participaram dos debates realizados em diferentes municípios do estado de São Paulo. Algumas sugestões em termos de políticas públicas colocadas pela Toyota ecoam demandas já conhecidas por parte do setor produtivo, como um sistema tributário justo e mais simplificado e “uma agenda clara, robusta e focada em competitividade, que permita ao setor privado trabalhar com previsibilidade e planos de investimento de longo prazo”. Nesta linha, Sugahara critica alguns incentivos de longo prazo concedidos de forma dispersa por regiões do país. Para ele, essas vantagens podem criar distorções no ambiente de livre concorrência. “Isso não significa ampliar incentivos, mas decidir quais áreas são críticas para colocar o Brasil na agenda global da eletrificação”, afirma.
Para Rodrigo Costa Marques, da Unesp, é possível que futuramente no Brasil coexistam diferentes tecnologias de veículos elétricos de acordo com as particularidades do local, a disponibilidade de infraestrutura e a demanda dos consumidores. Mesmo assim, é importante desenvolver políticas que valorizem o etanol. “O protagonismo vai ser alcançado pelo investimento em tecnologias que usem etanol, seja melhorando a combustão, seja produzindo eletricidade a partir do biocombustível”, diz.