A indústria automotiva caminha a passos largos para a sua “eletrificação”. Com cada vez mais pressão por eficiência energética e combate aos malefícios que os carros causam ao meio ambiente, é natural que as montadoras passem a investir em soluções para o desenvolvimento de novos produtos com esse propósito. Mas, sem querer cortar o barato de ninguém, mas já cortando, estamos no Brasil, e nossa realidade é bem diferente da de países que já possuem os carros elétricos como item quase que trivial no cotidiano.
Será que reunimos as condições para um aumento abrupto deste segmento em nossa indústria? Com a abertura de mercado, é possível que tenhamos como tornar esses produtos mais acessíveis ao público médio? E a manutenção, carregamento… como ficam?
O Canaltech traça um panorama para identificar o que já temos, o que não temos e o que precisamos para tentar pegar o trem da eletrificação da indústria automotiva.
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O que temos por aqui?
Antes de falarmos do que nos falta, é necessário que vejamos o que já temos. Atualmente, o mercado brasileiro possui quatro modelos de carros elétricos rodando pelas ruas: Renault Zoe, Nissan Leaf, Chevrolet Bolt e BMW i3.
O Renault Zoe é o mais barato dos quatro modelos elétricos à venda no Brasil. Custando R$ 149.990, ele se posiciona em uma faixa de preço de SUVs médios e sedãs de luxo, mas com porte semelhante ao de compactos como Argo e Polo. Já o Chevrolet Bolt segue o jeitão de monovolume, um misto dos extintos Fiat Idea e Nissan Livina; custando R$ 178.400, ele tem a maior autonomia dos elétricos à venda por aqui: 520 quilômetros.
O Nissan Leaf chega à sua segunda geração sendo finalmente oferecido ao público comum por R$ 178.400. Sua primeira versão rodou por ruas brasileiras em caráter experimental, sendo usado por taxistas, bombeiros, policiais e empresas selecionadas. Ele tem porte de hatch médio (Focus, Cruze, i30) e autonomia de 389 quilômetros.
Por fim, o BMW i3. É, disparado, o mais caro dos quatro, partindo de R$ 199.950. Seu estilo exótico esconde o uso de materiais ecologicamente corretos, mas conta com uma “trapaça”: ele não é totalmente elétrico. O i3 conta com um motor a combustão para aumentar um pouco sua autonomia, que beira os 400 quilômetros.
O curioso nos três primeiros modelos é o padrão de venda: nenhum deles pode ser adquirido pelo consumidor final. Apenas taxistas, bombeiros, policiais e empresas selecionadas podem comprá-los; enquanto isso, o i3 é tratado como o “único elétrico do Brasil” justamente por poder ser comprado por “qualquer pessoa”.
Isso ocorre porque nem nos maiores centros urbanos dispomos de grande oferta para o abastecimento desses veículos e as montadoras, claro, sabem disso. A BMW e a Volvo, por exemplo, já instalaram alguns pontos de recarga em cidades grandes e ao longo de estradas. Já é possível ir de São Paulo para o Rio de Janeiro por meio da Dutra carregando seu carro elétrico em postos de combustível que já abrigam essas estações de recarga.
No perímetro urbano da capital paulista, shoppings como o Iguatemi e alguns supermercados Pão de Açúcar disponibilizam a recarga gratuitamente, além de condomínios de alto padrão que, por iniciativa própria, fizeram essas instalações. Segundo levantamento, São Paulo tem pouco mais de 50 eletropostos.
Para efeito de comparação, em cidades como Amsterdã, Roma e até Lisboa já há muito mais opções para se fazer as recargas. A capital holandesa, por exemplo, possui 4 mil eletropostos.
O que falta
Os problemas para se ter um carro elétrico no Brasil não ficam restritos somente ao preço deles. Afinal, por mais eficientes que esses produtos sejam, eles precisam ser carregados, cuidados e revisados. Se com veículos à combustão já sofremos com a manutenção, imagina com esses modelos.
“Atualmente, a tecnologia empregada em carros elétricos ainda é muito cara. Porém, nos próximos anos, os preços da bateria, uma das principais barreiras para a viabilidade desses veículos, devem cair significativamente. Com essa redução, haverá enorme potencial comercial a ser explorado, alavancado pela economia de escala, principalmente com um maior volume de produção. Sabemos que o futuro do veículo será conectado, elétrico, autônomo e compartilhado”, explica Luciano Driemeier, gerente de Mobilidade e Novos Negócios da Ford, que possui no mercado brasileiro apenas um veículo híbrido, o Fusion. A ideia da montadora é de investir US$ 11 bilhões até 2022, com o lançamento de 40 modelos híbridos ou totalmente elétricos na sua linha global.
Como citamos acima, ainda há poucos locais de abastecimento para carros elétricos no Brasil. Por mais que todos esses modelos disponíveis por aqui utilizem a tecnologia Kers (também vista em híbridos), que transfere energia das frenagens para as baterias, obviamente que uma carga “de verdade” se fará necessária em algum momento.
Para facilitar o nosso raciocínio, fiquemos em São Paulo. Na maior cidade da América Latina existem pouco mais de 50 eletropostos para a carga. Pensemos: se o mercado crescer, como atender à demanda?
Pela lei brasileira, só as companhias concessionárias de energia elétrica regulamentadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) podem cobrar pelo quilowatt-hora (kWh). Ou seja: a menos que o Governo abra mão de controlar isso, dependeremos do Estado para investimentos nesses postos. Nem a tão sonhada abertura de mercado prometida pela atual administração pode garantir que tenhamos um ambiente mercadológico capaz de se autorregular e garantir que tenhamos acesso a esses carros a preços mais competitivos.
Isso sem falar que, se optarmos por recarregar as baterias dos carros em casa, pagaremos fábulas na conta de luz. Por isso, a adaptação mercadológica é bem abrangente e pode levar um certo tempo, além de muito estudo e investimento. “O Brasil segue na contramão do desenvolvimento. Hoje, toda a tecnologia de carro elétrico é importada e tem uma alta taxa tributária, o que inviabiliza sua aderência e também cria um outro problema: poucos investimentos em infraestrutura”, argumenta Paulo Sergio dos Santos, professor e orientador da Equipe B’energy Racing, da Faculdade de Engenharia de Sorocaba (Facens).
Incentivo fiscal pode ser o caminho
O ano de 2017 foi o que mais teve avanços no mercado de carros elétricos. O número de veículos do gênero ultrapassou 3,1 milhões ao redor do planeta, um aumento de 56% em relação ao ano anterior. Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), a evolução tem sido estável e muito boa, com mais de um milhão de novas unidades vendidas por temporada. Apesar disso, apenas três países têm frota elétrica que, ao menos, supera 1% do número total de automóveis: Noruega (6,4%), Holanda (1,6%) e Suécia (1%).
Para melhorar isso, países como Noruega e Alemanha traçaram metas ousadas. No caso do país nórdico, a expectativa é de eliminar os carros a diesel e gasolina até 2025. Já os germânicos pediram mais tempo: 12 anos. Mas o que esses países têm feito para aumentar a produção? A China, por exemplo, que produz metade dos carros elétricos do mundo, criou um sistema de crédito para estimular a indústria: qualquer fabricante que importe acima de 30 mil carros deverá se enquadrar nas metas estabelecidas para produção carros elétricos. O objetivo é aumentar a fabricação para 10% do total em 2019 e 12% em 2020.
A União Europeia, por sua vez, atacou outro flanco: estabeleceu uma diminuição de 30% na emissão de carbono nas frotas das montadoras até 2030, com meta de redução de 15% até 2025. Os fabricantes que violarem as novas regras poderão tomar multas de milhões de euros. Resultado: o número de modelos elétricos à disposição dos consumidores disparou.
Já no Brasil…
Os veículos elétricos no Brasil, até pouco tempo atrás, possuíam a maior alíquota de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) da indústria automotiva: 25%. Para estimular o crescimento desse setor, o Governo Federal, ainda na gestão Temer, anunciou a redução dos impostos sobre elétricos e híbridos para uma faixa entre 7% e 20%, o que, em alguns casos, pode representar taxa equivalente a que os carros populares com motores flex 1.0 recebem. Nem assim o preço desses automóveis abaixou consideravelmente, e eles continuam custando o olho da cara.
“Para implementar essa tecnologia no país, seria necessária uma redução tributária, a criação de planos de incentivos e subsídios às montadoras e desenvolvedores locais de veículos e investimentos em infraestrutura”, afirma Santos. “Além de incentivos fiscais e linhas de fomentos, seria necessário a junção da parte acadêmica, concessionárias de energia e montadoras de veículos para o estudo e implantação de infraestrutura condizente com nossa matriz energética, e também a adequação dos veículos que irão circular no nosso país”, complementa.
O que já temos hoje poderia ser ampliado para dar vazão a um crescimento que, mesmo que tímido, pode representar um caos a consumidores que optarem por depender de um veículo elétrico. “No que diz respeito à infraestrutura para abastecimento de carros elétricos, acredito que uma solução de curto a médio prazo seriam empreendimentos residenciais e comerciais se adaptarem e criarem alternativas, espaços e infraestruturas para o suporte a esses veículos”, afirma Flávio Engel, diretor de marketing e sustentabilidade do Pátio Victor Malzoni, um dos edifícios verdes da cidade de São Paulo.
Mas a “rota” é 2030
Decretado ao apagar das luzes em 2018, o Rota 2030 é o maior marco da história da indústria automotiva do Brasil e pode nos dar alguma luz para o desenvolvimento, inclusive do setor de veículos elétricos.
O novo programa foi dividido em três ciclos de investimentos ao longo de 15 anos, com renovação da regulamentação a cada um deles. Fabricantes de veículos e seus fornecedores ganharam incentivos para pesquisa, desenvolvimento e nacionalização de autopeças, mas agora têm metas apertadas de eficiência energética e adoção de equipamentos e sistemas de segurança veicular a cumprir.
Dentre as melhorias estão a queda do IPI de veículos elétricos híbridos que usem motor a combustão flex, capaz de rodar com etanol ou gasolina em qualquer proporção. Foi uma vitória sob medida para a Toyota, que batalhou pela aprovação do incentivo. A fabricante japonesa testava no Brasil o protótipo do Prius (o híbrido mais vendido do mundo) e anunciou, logo após a sanção da lei, que vai produzir no país um modelo com essa configuração. Logo depois, anunciou que o Corolla, seu produto mais vendido globalmente, também ganhará uma versão híbrida flex. Isso, claro, deve movimentar mais empresas.
Além disso, haverão incentivos para montadoras que possuírem, de fato, projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), sobretudo em tecnologias de propulsão alternativa. As fabricantes podem deduzir até 30% dos investimentos realizados em P&D no Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), limitado a 30% dos tributos devidos. Caso não registrem lucro, as empresas poderão acumular esses créditos tributários para abatimento futuro.
Serão considerados investimentos em tecnologias de propulsão alternativa:
- Direção autônoma
- Soluções de mobilidade e logística
- Dispositivos de segurança
- Eficiência energética
- Modernização de processos de produção
- Abertura de novas fábricas
- Desenvolvimento de fornecedores e componentes
Chegaremos lá?
Com a abertura de mercado, acordos de livre-comércio e, claro, investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, é possível que o Brasil possa se adequar e receber mais carros elétricos. Isso, porém, está longe de ocorrer.
Não é justo, no entanto, dizer que “não compensa” ter um veículo desses. Apesar de serem carros caros, colocando na ponta do lápis, a economia com o gasto de combustível e demais manutenções exigidas com o desgaste também devido ao uso de gasolina, álcool e diesel pode, a médio prazo, fazer com que o investimento em um veículo desse “se pague”.
Até lá, é possível que vejamos este segmento crescer e se sustentar de maneira mais sólida. Resta torcer.
Com informações: Automotive Business
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Fonte: Canaltech