Perfume para matar as saudades do carro a gasolina. E frasco de vidro em formato de bomba de combustível. Quando eu penso que já vi de um tudo nesse mundo, aparece mais essa. Se estiver interessado, saiba que o aroma harmoniza notas de gengibre azul, lavanda e madeira de santal, para simular um odor emborrachado, oleado e fumado dos derivados de petróleo. Mas, desconfio, não é para o bico (e gosto) de pobres mortais, como eu, que seguem fiéis aos cítricos, florais e amadeirados. E a preços abordáveis.
É que, para andar por aí cheirando a combustível fóssil, tem-se que comprar primeiro o novo modelo elétrico Mustang, da Ford. Custa, em média, a bagatela de 70 mil euros. A fragrância é o presentinho de luxo da fabricante de automóveis para os que dão o salto para o futuro, sem emissões de carbono. Claro, pela mesma ocasião, tornam a marca americana um pouquinho mais rica.
A estratégia comercial do fabricante de automóveis tem espertezas. Isso porque uma pesquisa, feita pela gigante multinacional, detectou que uma a cada cinco pessoas menciona a falta do cheiro de gasolina, entrando narina adentro, na hora de acelerar um carro elétrico. Isso, e o barulho característico do motor, já que o elétrico é silêncio puro.
Para a queixa do ronco do motor, problema que envolve, inclusive, questões de segurança nas ruas e riscos de atropelamento, já há solução em prática. Um som fake que sai de um autofalante. Faltava, então, a solução para apaziguar as saudades daquele cheirinho bom que sai do cano de escape. Também na hora de encher o tanque. Para estes radicais, um spray especial para inebriar o motorista, ele sentindo-se todo poderoso no volante do novo Mustang. Cheirando a rico.
“Mas, mais que cheiros do passado, o que eu queria mesmo de volta era um cheiro mais recente. O do mundo de antes da pandemia. Barricado atrás da máscara cirúrgica de múltiplas camadas”
Ah, as armadilhas do imaginário. Nesse vidro luxuoso de perfume, na forma de uma bomba de gasolina dourada, cabem mais que as combinações químicas inventadas por um perfumista. Do concentrado, embriagam narinas a memória dos tempos felizes da indústria petrolífera do século 20. Época da gasolina mais barata, das grandes viagens estradas a fora, da fascinação por modelos sonhos de consumo, ícones culturais. Dos populares e endiabrados Fuscas aos designers e caros Ferrari, Porsche, Lamborghini. Muitos destes, estrelas de Hollywood.
Não é à toa que o modelo inglês Aston Martin rodopiou vezes sem conta nas mãos de James Bond, combinando a imagem do carro esportivo ao luxo extravagante, a espionagens internacionais, a aventuras perigosas e mulheres belíssimas, da saga do espião. O mundo másculo e musculado dos carros em combustão.
Hoje os carros andam a beber mais que gasolina para sustentarem a imagem de virilidade que a publicidade e o cinema construíram, por décadas. Viagra, por exemplo. Pois não é a potência um dos atributos que colaboram no processo de identificação entre carro e o gênero masculino, principalmente?
Como no anúncio publicitário para televisão, feito para um novo modelo da Fiat. Caído por acidente no fundo do tanque de combustível, o comprimido azul deixa o veículo encorpado, bombado, pronto para a ação. O resto fica pela imaginação de vocês.
Mas, o que interessa aqui é que toda essa história de carros poluidores, finalmente, está por um fio. É com isso que brinca o perfume do Mustang. Destes tempos de ouro dos derivados de petróleo, você pode ter só um cheirinho. E olhe lá.
Fragrância que lembra a gasolina é só o começo. Na crônica da próxima semana você vai saber mais como um grupo de cientistas europeus planeja sintetizar em essências centenas de cheiros do passado. De pólvora, por exemplo. Já imaginou?
Com a nova geração de robôs, ideias assim é que não faltam. Eu, pessoalmente, já me vejo sintetizando cheiros da minha infância, no Ceará. Spray com aromas de quintais arborizados e banhos a baldes, na beira de cacimbas.
Mas, mais que cheiros do passado, o que eu queria mesmo de volta era um cheiro mais recente. O do mundo de antes da pandemia. Barricado atrás da máscara cirúrgica de múltiplas camadas, é um nariz que sonha com o dia de respirar a plenos pulmões e sem medo. E salvar dos sintetizadores e vidrinhos os perfumes de abraços e encontros espontâneos, na rua. Estes, sempre da atualidade.