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Naquele mesmo 1985, o mercado chinês se resumia a dois modelos: o Toyota Crown, uma exclusividade restrita aos oficiais e ao alto escalão do partidão comunista de lá, que na época custava 80 mil yuans (o equivalente a US$ 28.500), e o Fiat 126p, subcompacto importado pelo governo para oferta ao valor subsidiado de 23 mil yuans (US$ 8.000).
Na ponta do lápis, havia um Fiat 126p para cada 6 milhões de chineses e, durante toda a década de 80, o volume comercial do país não ultrapassou 40 mil unidades anuais – ou seja, a Grande Muralha guardava um mercado que representava menos de 0,003% do norte-americano.
Mas o mundo deu voltas e, hoje, são os asiáticos que dominam a cena. No ano passado, os chineses compraram 19,2 milhões de veículos, volume 32% maior que o alcançado nos Estados Unidos – 14,5 milhões de unidades.
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Na briga da eletromobilidade, então, não há comparação: as vendas de elétricos no mercado chinês, bateram 1,14 milhão de unidades só nos primeiros três meses de 2021, enquanto não passaram de 297 mil unidades na terra do Tio Sam. Mais impressionante é o fato de as marcas chinesas responderem por 45% das vendas mundiais neste segmento.
“Mas o domínio da China não se relaciona apenas às vendas”, pontua Felipe Munoz, que assina o relatório deste mês da consultoria Jato Dynamics, um dos maiores fornecedores globais de ‘business intelligence’ automotivo.
“No aspecto produtivo, vemos que seis de cada dez elétricos vendidos no mundo têm fabricação chinesa. Ou seja, além de concentrar 45% das comercializações, a China responde por 60% da produção de modelos verdes”.
É a partir deste entendimento – e não dos comentários lisérgicos dos pós-doutorados em Facebook – que o leitor, agora, pode subir um degrau e ascender a outro nível, compreendendo o quão atrasado o Brasil está em relação à eletromobilidade.
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Enquanto as maiores montadoras do planeta estão dando nó em pingo d’água para atender a regulamentação chinesa, tornando as exigências legais do país como um verdadeiro padrão global, o Brasil sequer tem um projeto legislativo para a transição.
“Esse debate é fundamental e inadiável, pois a indústria automotiva precisa saber como direcionar seus investimentos para as próximas gerações de veículos e para inserir o Brasil nas estratégias globais de motorização com foco total na descarbonização”, alerta o presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), Luiz Carlos Moraes.
Do outro lado do mundo, as queixas são bem diferentes e, com a chegada da China à vanguarda da regulamentação para os EVs, as multinacionais têm que correr para se adaptarem às novas exigências. “Precisamos ser sempre mais rápidos, aqui”, declarou o chefe de pesquisa e desenvolvimento da Mercedes-Benz chinesa, Hans Georg Engel.
“O intervalo entre a publicação de uma nova legislação e a data em que ela entra em vigor é muito curto. Às vezes, alterar os componentes principais de um modelo que já existe é mais complexo do que desenvolver um novo automóvel do zero”, justificou Engel, ponderando que, apesar de muitas “surpresas serem indesejáveis”, não há como virar as costas para o maior mercado do mundo.
Se, lá, a pressa vem gerando uma frustração borbulhante com o processo regulatório, por aqui parece que tudo já está encaminhado quando, na verdade, ficamos parados no tempo.
“Outros países já definiram suas metas de descarbonização, bem como os caminhos para se chegar a elas. O Brasil, em seu papel de um dos principais mercados para o setor de transporte no mundo, não pode mais perder tempo”, conclama Moraes, da Anfavea.
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“Nenhuma regulação esquecida”
Há até bem pouco tempo, os automóveis e comerciais leves que atendiam as regulamentações americana e da Comunidade Europeia não tinham dificuldade em cumprir a legislação chinesa que, basicamente, equivalia a um compilado desses dois mercados.
Mas a coisa mudou. E mudou, justamente, por causa do que demonstramos no início deste texto: como a China é o maior mercado mundial de elétricos, respondendo por quase a metade das vendas de modelos verdes, as autoridades e os legisladores locais assumiram a liderança global na conceituação não só de um padrão para os veículos, como para uma variedade de setores que orbitam a cadeia automotiva.
“O mundo está mudando muito rápido com a eletromobilidade. Os carros, agora, são movidos por softwares e, dada a importância da China, nossa companhia vai garantir que nenhuma regulamentação seja esquecida”, assegura Hubertus Troska, membro do conselho de direção executiva da Daimler AG, a dona da Mercedes-Benz.
A Daimler inaugurou um novo centro de pesquisas próximo de Pequim, capital chinesa, e, enquanto por aqui a imprensa comemora o anúncio de um investimento de R$ 7 bilhões (o equivalente a US$ 1,25 bilhão) pela Volkswagen para toda a América Latina – olha o México aí! – até 2026, a mesma VW vai aportar mais de US$ 3 bilhões (mais de R$ 17 bilhões ou 140% a mais) em Heifei.
O objetivo será ampliar sua fábrica de baterias e comprar ações da sua parceira chinesa, na esperança – note bem, na “esperança” – de assumir o controle da sua operação por lá, que hoje é uma joint venture com a JAC.
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Os investimentos em centros de desenvolvimento são uma forma de as gigantes do setor driblarem as surpresas regulatórias do governo de Pequim.
Da mesma forma que o Centro de Tecnologia e Desenvolvimento Automotivo (Catarc) chinês, que tem o apoio do Ministério da Indústria da China, aumenta seu alcance mundial com a inauguração de um escritório em Genebra, sede dos reguladores de transportes da Organização das Nações Unidas (ONU).
O resultado é que alguns países da União Europeia, bem como o Chile e Israel, já adotaram o padrão legislativo chinês. “O impacto global nas regras de emissões também vai nos ajudar a exportar motores elétricos, componentes e máquinas pesadas”, disse Wu Xianfeng, do Ministério da Ecologia e Meio Ambiente da China.
No ano passado, Pequim delineou um plano batizado de “Padrões 2035”, que levou dois anos para ser consolidado como uma estratégia industrial que vai tornar o país a voz mais importante, em nível mundial, para a definição de padrões internacionais para os EVs.
Como os menos ingênuos já perceberam, vamos ficando cada vez mais para trás na caravana da eletromobilidade, seja pela desindustrialização galopante, seja pela mudança do eixo geopolítico global, em que seguimos como colônia de um império em erosão, seja pelo verdadeiro descaso do governo brasileiro com aquele que foi, durante 70 anos, um dos setores produtivos mais importantes da economia nacional.
Em 1985, um Fiat 147 Spazio custava o equivalente a 91 salários mínimos e, hoje, um VW Gol – modelo para o qual a VW já expediu a sentença de morte – bate nesta mesma casa. É um cenário insólito, para não dizer revoltante.
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