Na indústria automobilística, o Brasil tem um respeitável histórico de soluções peculiares e inovadoras para movimentar sua frota. Foi assim, nos anos 1970 e 1980, com o programa de desenvolvimento dos carros movidos a álcool, o Proálcool e duas décadas depois com os automóveis flex, que rodam com gasolina ou etanol. Agora, algumas montadoras vislumbram a perspectiva desse fenômeno se repetir em meio à transição global em direção aos carros elétricos. São veículos que, quanto às preocupações com as alterações climáticas e à alta nos preços do petróleo, tornaram-se uma boa solução para o futuro da mobilidade. Por aqui, no entanto, o modelo de substituição de combustíveis fósseis hoje adotado nos países desenvolvidos esbarra no preço astronômico dos veículos elétricos puros e na dificuldade de se estruturar no curto prazo uma rede de abastecimento de energia própria para automóveis. Com isso, a aposta local aponta para um outro caminho, que combina a eletricidade com etanol.
Com seu apelo econômico e ambiental, os modelos híbridos movidos a etanol são promissores mesmo num momento de crise da indústria automotiva. Em 2018, foram vendidos 3 800 carros elétricos e híbridos, número que bateu em 38 800 no ano passado. Até junho deste ano, já foram emplacados 20 700 automóveis com esse tipo de propulsão. São números ainda modestos frente a toda a frota nacional, mas demonstram grande potencial de evolução, passando de 0,2% dos emplacamentos em 2018 para 3,1%, este ano até junho.
Dona de marcas como Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, a Stellantis, líder em vendas no Brasil, planeja lançar sete modelos elétricos ou híbridos até 2025. “O etanol é uma chance única que o Brasil tem para descarbonizar rapidamente sem deteriorar a indústria”, diz Antonio Filosa, presidente do grupo para a América do Sul. “Ele é claramente mais competitivo que o produto puramente elétrico, com praticamente a mesma redução de impacto no meio ambiente”, explica.
A japonesa Toyota já havia percebido essa rota antes das concorrentes. Em 2018, a empresa desenvolveu um modelo Prius híbrido movido a eletricidade e a etanol. Pouco depois, chegou ao mercado a primeira versão flex do Toyota Corolla. Hoje, um dos modelos que mais crescem em vendas na montadora de origem japonesa é o SUV Corolla Cross híbrido — desde seu lançamento, em 2021, até junho deste ano foram comercializadas 18 271 unidades. Neste ano, o Corolla Cross hibrido respondeu por 7 244 do total de 14 970 unidades do modelo Cross vendidas. “Um veículo híbrido flex é um dos mais limpos e eficientes do mundo, com um dos maiores potenciais de compensação e reabsorção de gás carbônico, se levar em consideração todo o ciclo de produção do etanol”, diz Rafael Chang, presidente da Toyota do Brasil. Em média, um veículo híbrido do porte do Corolla Cross custa cerca de 200 000 reais, aproximadamente 40 000 a mais que uma versão convencional, enquanto um modelo totalmente elétrico de padrão médio, como o Nissan Leaf, sai por quase 300 000 reais.
A aposta do setor no biocombustível como alternativa para adotar uma transição energética de forma rápida é tamanha que a Volskwagen anunciou que vai inaugurar um centro de pesquisa e desenvolvimento voltado para biocombustíveis no segundo semestre de 2022. “Estamos discutindo com alguns parceiros, como governo, entidades, usinas e universidades, o desenvolvimento de uma tecnologia complementar à eletrificação baseada no etanol, com grande potencial de exportação para outros países emergentes”, diz o argentino Pablo Di Si, CEO da Volkswagen na América Latina.
Com o movimento do mercado automotivo rumo ao desenvolvimento de modelos híbridos, o setor sucroalcooleiro também enxerga possibilidades de crescimento. Um cenário estimado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) para as metas de descarbonização previstas no programa de substituição de combustíveis fósseis, o RenovaBio, prevê que o consumo de etanol atinja um volume próximo a 50 bilhões de litros em 2030 — hoje, esse montante é de cerca de 30 bilhões de litros. “O veículo flex, quando abastecido com etanol, já tem emissões inferiores às da maioria dos modelos híbridos a gasolina. Quando se junta a eficiência do motor elétrico ao etanol, a pegada de carbono é ainda menor”, avalia Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica). “No futuro, as tecnologias serão complementares e cada país terá o modelo que for mais competitivo a suas características”, explica. Nesse cenário, a solução brasileira é promissora.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798