Uma publicação com dez afirmações sobre o meio ambiente no Brasil mistura dados verdadeiros com imprecisos. A sequência de mensagens no Twitter, verificada pelo Comprova, defende que o Brasil tem a mais limpa matriz energética dos países do G20, o que é verdade se considerados dados de energia renovável da IEA (Agência Internacional de Energia), mas também aponta que a agropecuária brasileira é a mais limpa dentre as maiores economias do mundo e que o Brasil é o país que mais tem feito no âmbito do Acordo de Paris, o que não se sustenta com base em dados e avaliações de órgãos independentes.
A série de publicações também afirma que o etanol seria uma fonte de energia mais limpa que a usada em carros elétricos na maioria dos países europeus. A informação é correta segundo especialistas ouvidos pela reportagem, mas apenas quando comparada a países com geração baseada em fontes de energia não renováveis, como o carvão.
Os tuítes também sustentam que a Amazônia teria 84% de mata nativa preservada, mas, segundo informado pela MapBiomas, o percentual de área não desmatada seria de 78%, sendo que desse total, uma parte já sofreu algum nível de degradação por queimadas e exploração madeireira.
As postagens ainda sustentam que o país tem 60% de área ocupada por florestas, o que está correto segundo dados do MapBiomas. Porém, afirmam que o país possui “a legislação ambiental mais restritiva dos países do G20”, o que encontra divergências em estudos sobre legislação florestal e preservação de áreas ambientais consultados pelo Comprova.
O texto foi publicado como uma sequência de postagens no Twitter por Vicente Santini, ex-secretário executivo da Casa Civil e nomeado em setembro como assessor especial do Ministério do Meio Ambiente. Procurado, não respondeu até a publicação desta checagem.
Agropecuária mais limpa?
A publicação afirma que “o Brasil tem a agropecuária mais limpa dos países do G20”. O assunto já foi alvo de uma checagem recente do Fakebook.eco, do Observatório do Clima, que apontou ausência de indicador para comparar a sustentabilidade das áreas produtivas entre os países e apresentou dados como uso de agrotóxicos e fontes de emissões de gases do efeito estufa para avaliar o impacto gerado pela atividade no Brasil.
A verificação do Fakebook.eco aponta que a Agenda 2030, da ONU (Organização das Nações Unidas), estabeleceu um indicador de proporção de área sob agricultura produtiva e sustentável para avaliar o setor em países sob o aspecto da sustentabilidade ambiental, econômica e social. O indicador, no entanto, ainda está sendo testado em países selecionados de diferentes regiões, segundo o site da FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura.
Por isso, para avaliar a sustentabilidade da agropecuária brasileira, o Fakebook.eco recorreu a outros indicadores. Um deles é o uso de agrotóxicos. O Brasil aparece como o terceiro país que mais usa agrotóxicos em número absoluto no mundo, conforme dados da mesma FAO. Na análise por área plantada, está entre os 28 países com maior utilização –das nações do G20, apenas China, Japão e Coreia aparecem com maior utilização por área cultivada. O país também utiliza pesticidas proibidos em nações da Europa e é o segundo maior comprador destes insumos.
Além disso, a agropecuária foi responsável, diretamente, por 22% do total das emissões de gases do efeito estufa no Brasil em 2018, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. É o segundo maior fator, atrás apenas da mudança de uso do solo, que inclui desmatamento e queimadas. A redução dessas emissões é o principal compromisso assumido pelo país no Acordo de Paris.
Um estudo da Embrapa sobre sustentabilidade na agricultura também aponta que, apesar de ter tido avanços, o país “continua incorporando cerca de 1 milhão de hectares de áreas de vegetação nativa ao sistema de produção agropecuária a cada ano”.
Brasil e o Acordo de Paris
Outro trecho da postagem afirma que “o Brasil é o país que mais tem feito no âmbito do Acordo de Paris”. No entanto, relatórios que avaliam o desempenho dos países no tratado mostram que o Brasil pode não atingir a meta de 2030 e teve projeção de emissões ampliadas por fatores como o desmatamento.
O Acordo de Paris foi firmado por 195 países para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e, desse modo, manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C até o final do século –se possível, menor que 1,5°C. O tratado completa cinco anos em dezembro de 2020, quando países devem informar se renovarão as metas. Bolsonaro já ameaçou sair do acordo, mas, depois, voltou atrás.
A avaliação mais recente da Climate Action Tracker, consórcio científico que faz análises independentes sobre as propostas dos países no Acordo de Paris, classifica como “insuficientes” as metas apresentadas pelo Brasil para promover a contenção no aquecimento do planeta. O órgão aponta também que “existem lacunas significativas na formulação de políticas brasileiras para conter o crescimento das emissões”.
As medidas de isolamento social motivadas pela pandemia da Covid-19 frearam a atuação de setores como transporte e indústria, o que gera expectativa de queda de 4% nas emissões de gases do efeito estufa nesses segmentos em 2020 no país, segundo a organização. Mesmo assim, a análise aponta que o desempenho brasileiro é prejudicado por pontos preocupantes como a falta de políticas para mitigar emissões no setor agrícola e as taxas de desmatamento cada vez mais altas –aumento de 34% em 2019 e perspectiva de crescimento ainda maior este ano, segundo a avaliação.
De acordo com a análise, a redução de emissões causada pela crise da Covid-19 poderia permitir ao Brasil cumprir a meta para 2025. No entanto, sem uma queda sustentada a partir da pandemia, o país estaria fora do caminho para cumprir a meta de 2030. Outros compromissos, como reduzir o desflorestamento e alcançar o desmatamento ilegal zero na Amazônia até 2030, também devem ser perdidos, conforme o Climate Action Tracker.
A Índia, que também integra o G20, tem metas que são consideradas “compatíveis” com o objetivo de conter o avanço da temperatura em até 2ºC e deve conseguir cumprir a meta estabelecida de redução de emissões até 2030, segundo a última avaliação do Climate Action Tracker. Os motivos devem ser a redução de emissões durante a pandemia e as políticas até aqui adotadas, apesar de ressalvas feitas no estudo sobre os planos de expansão da energia a carvão no país asiático.
O último Relatório Sobre a Lacuna de Emissões, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente , publicado antes da pandemia, em novembro de 2019, avalia as ações dos países e aponta que apenas seis integrantes do G20 deveriam atender as metas do Acordo de Paris com as políticas atuais adotadas: China, Índia, México, Rússia e Turquia, além da União Europeia. Outros sete países, incluindo o Brasil, precisariam de ações adicionais para atingi-las. No caso do Brasil, diz o relatório, as projeções de emissões de publicações atualizadas anualmente foram revisadas para cima por causa, entre outros motivos, de mudança na tendência de desmatamento.
Uma nota explicativa do Observatório do Clima também avalia o cumprimento das metas do Brasil no Acordo de Paris e aponta que o país ainda não havia apresentado um plano de implementação das metas propostas em 2015.
O órgão expõe, entre outros pontos, uma das principais preocupações: o aumento do desmatamento. O texto indica ainda que medidas como a redução do orçamento de prevenção a incêndios florestais, a suspensão do Fundo Amazônia e a tentativa de abrir terras indígenas para mineração “ajudaram a desviar o Brasil de seu NDC (as metas) ao acelerar o desmatamento”.
Etanol e carros elétricos
Outro trecho verificado afirma que “o etanol é uma fonte de energia mais limpa que a maioria usada nos carros elétricos europeus”. A informação é correta, conforme fontes consultadas, desde que a comparação seja com países que tenham a geração de energia elétrica baseada em fontes poluentes como o carvão.
Consultado, o vice-presidente da AEA (Associação Brasileira de Engenharia Automotiva), Edson Orikassa, confirmou que o etanol pode ser uma fonte mais limpa do que a usada em carros elétricos europeus. Mas é preciso observar algumas condições. A principal delas é que a comparação deve ser com fontes de energia não renováveis, como o carvão, predominante em alguns países europeus. Em comparação com a energia elétrica em países como o Brasil, onde prevalece a energia hidrelétrica (renovável), o carro elétrico gera menos emissões do que o etanol.
O dirigente explica que o assunto é complexo porque é preciso considerar todo o ciclo envolvendo a produção do etanol e da energia elétrica (análise chamada de “do poço à roda”), e não apenas a partir do abastecimento (“do tanque à roda”). No entanto, segundo ele, esse cálculo geral de emissão de gases de efeito estufa é menor no caso dos carros a etanol do que nos elétricos quando considerada a energia termelétrica como fonte, como ocorre em parte dos países europeus.
“Considerando todo o ciclo, apesar de você ter variação dependendo do tipo de adubo, do combustível usado na produção do etanol, mesmo assim nesse cômputo geral realmente os veículos flex são melhores do que os elétricos da Europa, se você considerar a principal fonte de energia na Europa, que é a termelétrica”, disse Orikassa.
A situação muda ao comparar o etanol com veículos elétricos abastecidos em países com maior participação de energia renovável.
“Se considerar a energia elétrica gerada no Brasil, de maioria hidráulica, vamos imaginar trazer o veículo da Europa e carregar com energia gerada no Brasil, nesse caso os elétricos seriam um pouco melhores do que o híbrido flex, e também que o flex, mesmo considerando do poço à roda”, afirma.
O coordenador de Comunicação do Observatório do Clima, Claudio Angelo, também confirma que no balanço de emissões o etanol emite menos gases que carros elétricos em países que têm a energia a carvão como predominante na matriz de eletricidade.
Segundo dados da Agência Internacional de Energia, a energia a carvão foi a segunda maior fonte de energia elétrica em países da Europa, com 21% do total em 2018, atrás apenas da energia nuclear. Países como Alemanha, Polônia e Turquia detêm os maiores volumes desta geração no continente, segundo o IEA. Em alguns países, no entanto, a transição para fontes renováveis começa a diminuir a proporção das termelétricas, o que dificulta uma análise sobre o etanol ser mais limpo que a energia elétrica na rigorosa “maioria dos países europeus”, conforme mencionado na postagem.
Verificação
Em sua terceira fase, o Projeto Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal. As equipes do Comprova checam áudios, imagens e textos compartilhados nas redes sociais e que alcançaram alto grau de viralização. O tuíte do assessor especial do Meio Ambiente foi retuitado 2,6 mil vezes e curtido 12,4 mil até a publicação desta checagem.
O governo federal sofre pressão para preservar o meio ambiente em meio a grandes queimadas que devastam o Pantanal e a floresta amazônica. A política ambiental brasileira atraiu de forma negativa a atenção de bancos, grandes empresas, fundos de investimentos e ameaça o acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos e que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.