Bicicletas, transportes públicos, ciclovias, vias partilhadas, carros híbridos, microhíbridos, carros elétricos, carros autónomos, carros partilhados. Tal como os cavalos deixaram de ser o meio de transporte primordial, Rodrigo Ferreira da Silva, presidente da Associação Nacional para o Ramo Automóvel (ARAN), acredita que os automóveis vão ter também a sua própria revolução, evoluindo do utilitário para o objeto de admiração, desaparecendo a propriedade para dar lugar à subscrição.

“Tenho 44 anos, não sou assim tão velho, mas quando tirei a carta nunca ouvi falar de ciclovias nas aulas de código — é preciso fazer o trabalho e um esforço para não pôr portugueses contra portugueses, automobilistas contra ciclistas. As soluções têm de ser boas para todos”, defende. “As soluções têm de ser pensadas para todos e não podem ser impostas.”

Quando se põe a olhar para a frente, acredita que os filhos, agora pequenos, já vão conhecer uma realidade nova em que o carro é muito menos um bem e muito mais um serviço que se subscreve, num contexto com várias soluções de mobilidade, que põe o automóvel entre uma trotineta e um avião.

“As novas gerações se calhar já não têm como primeiro objetivo de vida comprar carro e sair de casa, têm prioridades diferentes, conhecem mais o mundo e são mais viajados, tendo essa capacidade intrínseca de absorver as melhores práticas — em muita coisa”, diz, numa conversa, por telefone, que antevê o futuro sem esquecer o passado.

Numa “conferência como o Euro2020”, a ARAN celebra o 80.º aniversário um ano depois da data certa, a organização que representa concessionários, oficinas a lojas de peças e carroçadores, junta-se-se no Porto para repensar o futuro do setor automóvel: “é um bocadinho esta provocação, vamos pensar o que vai acontecer no futuro, limpando o quadro destas ideias do passado, para nos estimular a imaginar e pôr em prática aquilo de que precisamos para não ficar para trás nesta transformação que está a existir”, conta o presidente.

Como será um carro daqui a dez anos?

Se eu tivesse a resposta a essa pergunta, podia-me reformar, porque ela valia muito dinheiro [risos]. Acho que não temos um carro do futuro, teremos vários carros, vários futuros, várias tecnologias.

Sem arriscar muito, o que podemos adiantar é que serão veículos seguramente mais amigos do ambiente, sejam eles elétricos ou socorrendo-se de qualquer tecnologia que esteja a ser desenvolvida — o hidrogénio também —, ou outra que hoje nem ainda conheçamos.

Serão carros mais digitais, mais conectados, já com um elevado grau de autonomia — assim permitam também as estradas e as infraestruturas. Porque estamos a falar de elétricos, amigos do ambiente, autónomos, conectados, e tudo implica infraestruturas, sejam elas de tecnologias de informação, como o 5G, sejam postos de carregamento elétrico e todas as infraestruturas que suportam também este desenvolvimento.

No fundo, não podem ser os automóveis a rebocar estas infraestruturas, as infraestruturas têm de existir e estimular a transição para esta nova realidade.

E também acho que haverá, por parte das pessoas, um sentido mais utilitário, mais de utilização do transporte individual do que propriamente de propriedade.

Ao sê-lo assim, também pode abrir portas a modelos de subscrição que estejam interligados com outros transportes: e isso, para mim, é visto como um grande desafio, uma grande oportunidade para ajudar o ambiente e ajudar as famílias a terem menores custos e também a transportarem-se de uma forma mais segura e de uma forma mais racional.

Hoje, vemos que um automóvel é usado uma hora no dia e depois está parado sete ou mais horas — e já nem falo da noite! Com certeza que esse automóvel do futuro vai permitir uma melhor otimização deste recurso.

Precisamente por isso, faz sentido termos hoje cidades onde o transporte individual ainda é rei?

Acho que nenhuma cidade é igual à outra. Em Portugal chegamos muito tarde ao entendimento de que tínhamos de estimular as pessoas com transportes a um custo certo, de uma forma rápida e de proximidade: ninguém vai apanhar um transporte público a cinco quilómetros de casa.

Eu moro na Maia, a norte do Porto, e vou frequentemente a Lisboa. Muitas vezes gostaria de usar o comboio, mas deslocar-me de casa, estacionar o carro na estação de Campanhã e apanhar o comboio é tempo suficiente para eu passar Aveiro na autoestrada. Há um salto qualitativo a ser dado nas infraestruturas: hoje as distâncias medem-se em tempo, se o comboio me puser em Lisboa em duas horas, isso é ótimo, porque de carro nunca vou demorar menos. Mas se o comboio demorar mais de três horas, começo a pensar “okay, três horas e tal de viagem, mas ainda tenho de deixar o carro na estação, ainda tenho de apanhar o comboio, que vai para uma estação no centro da cidade, tenho de ir aos parques tecnológicos que estão no eixo da A5, como chego lá? Desisto e vou de automóvel”.

Há aqui um arquipélago de mobilidade que tem de ser pensado. Hoje é impossível tirar o transporte individual porque as redes de transportes não o conseguem substituir de forma segura e com qualidade. Mas é um caminho a ser feito, são revoluções tranquilas de que precisamos. Precisamos mesmo de mudar, mas de maneira a não deixar ninguém para trás.

Porque um automóvel é um investimento grande que as famílias fazem. Isto de, de um dia para o outro, dizer “isto não pode ser assim, isto não pode ser assado”, tem efeitos. Muitas pessoas compram o carro com financiamento e uma medida mal tomada pode desvalorizar muito o bem de uma pessoa — e ninguém quer isso, porque as pessoas ou pouparam muito, ou endividaram-se para comprar um automóvel e tem de haver respeito pelas decisões dos consumidores.

Queremos um planeta melhor para todos, mas não podemos deixar ninguém para trás. Nas cidades tem de haver um esforço, um investimento e também um exemplo de quem lidera, que não seja só para a fotografia. Mas não se pode tentar importar à força soluções que existem noutros lados.

Adoro andar de bicicleta, acho um ótimo transporte, mas é preciso perceber que nós não somos Amesterdão, nem somos Utreque, nos Países Baixos. Temos as nossas próprias características. Em Portugal há zonas do país, como a zona centro — Aveiro, Anadia, Águeda —, onde a bicicleta é muito usada. Mas é completamente diferente uma cidade plana, junto ao litoral, do que é Bragança ou a Guarda.

Tudo se está a adaptar e estamos a valorizar cada vez mais o património natural. O automóvel tem de se integrar nisto — e as pessoas têm de perceber que não vão conseguir entrar com o carro pela loja dentro: vão ter de o estacionar e para isso têm de ser criados parques a preços justos (o automóvel já paga uma carga fiscal tão elevada no ato da compra, na sua utilização, seja no combustível, seja no IUC, seja nas tributações autónomas da empresa).

O automóvel tem de fazer parte de uma rede integrada da nova mobilidade. Tenho dois filhos pequenos, com três e cinco anos, e no futuro se calhar vão ter um cartão — virtual —, com uma subscrição, podendo ter um carro X dias por ano, uma trotinete X dias por ano; vão ter X viagens de avião por ano e X viagens de comboio. Se quiserem, podem ter um monovolume de sete lugares para ir com os amigos de férias, ou podem ter um cabriolet para passar um fim de semana romântico com a namorada num sítio qualquer.

Não quero dizer que vai haver uma “Netflixação” do automóvel, mas acho que o modelo de subscrição vai ter um peso importante e que vai ajudar nesta mobilidade.

Como é que um modelo desses se adapta a um objeto a que muitas vezes nos ligamos numa relação quase de amor?

Vai continuar a haver essa paixão, vai continuar a haver essa militância, mas acho que vai ser um bocadinho o que acontece hoje com as pessoas que gostam de cavalos: já não têm o cavalo para ir do ponto A ao ponto B, têm-no para dar uns passeios, fazer umas corridas, saltos, para cuidar deles, passear no picadeiro… Acho que uma parte do automóvel vai ficar assim.

Na utilização… A Apple Music é um serviço de subscrição de música e ninguém fica indiferente à marca. As próprias marcas vão poder oferecer o pacote de subscrição delas: se eu sou um fã de carros suecos, ou sou muito germanófilo em termos de automóveis, porque não aparecer um fornecedor chamado “German’s Autoflix” [qualquer coisa como “Autoflix Alemão”], que nos permite ter hoje um BMW, amanhã um Mercedes, depois um Audi, um Volkswagen… E vamos usando automóveis alemães, porque é aquilo de que gostamos. Ou uma subscrição dos GTis, e temos um operador que nos oferece os GTi das diferentes marcas e experimentamos um Peugeot GTi, um Golf GTi.

Acho que as novas gerações não vão ter uma ligação tão afetiva com a propriedade do automóvel — podem tê-la na mesma com a utilização. As marcas vão continuar a existir e a trabalhar o intangível.

A marca do champô ou da pasta dos dentes ninguém vê, há um consumo privado. Agora, o automóvel toda a gente vê; é impossível conduzir um carro sem ninguém ver.

Olhando ainda para a infraestrutura, já é viável ter um carro elétrico em Portugal?

Já é viável ter um carro elétrico em Portugal. Agora, se me disser que faz dez mil quilómetros por mês e tem de ir todas as semanas a Bragança e a Faro, digo-lhe que não compre. Compre um modelo híbrido, que assim nunca fica mal, nunca está pendurado, porque se acabar a parte elétrica, mete gasolina ou diesel.

Mas isto é a minha opinião, pessoal, não é enquanto presidente da ARAN. A resposta depende um bocadinho da utilização de cada um.

Eu não conseguia: vou muitas vezes a Lisboa, tenho muitas deslocações fora do Porto; a matemática de ver onde está o posto e quanto tempo me demora a carregar o carro, se tenho de vir logo… Eu compraria um carro elétrico se tivesse garantias de que a minha mobilidade profissional não seria afetada.

E mesmo as infra-estruturas do Estado: será que todas as corporações de bombeiros estão hoje preparadas para fazer desencarceramentos em carros elétricos? Se cortam o carro no sítio errado, ficam lá no sítio. A gasolina também é inflamável, mas é diferente e assim sendo, será que as pessoas têm formação? Estão todas à vontade para fazer esse tipo de desencarceramento?

Como digo: são revoluções, temos de mudar a forma como nos movemos e protegemos o planeta, mas não pode ser ao ponto de deixarmos grande parte da população ou das empresas para trás ou com dificuldades.

Que é um bocadinho o que está a acontecer hoje. Os carros elétricos são muito mais caros que os carros a combustível; um carro elétrico do segmento mais baixo equivale ao preço de um carro a combustão dos segmentos mais altos. São os mais acessíveis, mas estão a pagar quase 1,80€ por litro de gasolina…

Hoje temos o Estado a financiar os carros elétricos de grande cilindrada. Os carros que tinham até preços mais económicos e que tinham algum apoio, os mild-hybrid [micro-híbridos, que têm um motor elétrico a auxiliar o motor de combustão], perderam os apoios no último orçamento do Estado — o que não faz sentido nenhum.

Compra um carro plug-in e se quiser nunca carrega o carro, anda sempre a gasolina ou a diesel. Os outros, que tinham a tecnologia híbrida lá dentro, que não consegue desligar, mesmo que queira, ficaram sem apoio. Temos estas medidas avulso que vão em sentido contrário àquilo que pretendemos e que são muito difíceis de explicar ao setor.

E depois, se perguntar ao português que ganha menos que a média sobre carros elétricos, ele dirá que o Estado anda a financiar a compra de carros dos ricos — é a opinião que existe, que é só para as frotas das grandes empresas… É isso que nós queremos?

Voltando ao futuro da mobilidade urbana, faz sentido tanta animosidade com a construção de ciclovias?

Não faz sentido nenhum, as ciclovias são importantíssimas e fazem parte da tal infraestrutura que é preciso para estimular a utilização, da mesma maneira que é preciso um carregador para os carros elétricos.

Agora, o uso da bicicleta não pode ser também uma coisa imposta. Muitas vezes, mesmo quem quer defender as ciclovias, perde um bocadinho o argumento porque também quer impor um modelo que não está adaptado à nossa realidade.

A primeira adaptação que tem de acontecer é com os condutores. Ainda hoje vejo condutores que não sabem conduzir com motas — as estradas portuguesas ainda não seguras para as motas e já há motas há anos.

Considero que a velocidade dentro das cidades em muitos casos devia ser ainda mais baixas. Mas é um processo: temos de ensinar os miúdos nas escolas, ensiná-los nas escolas de condução, ter os pais a dar-lhes o exemplo. Este trabalho não se faz em semanas ou meses: são anos.

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