Depois que começou a pandemia causada pelo novo coronavírus, a quantidade de sepultamentos diários em cemitérios brasileiros dobrou e até mesmo triplicou em algumas regiões do país. Em Manaus, capital do Amazonas, a prefeitura foi obrigada a abrir covas coletivas, chamadas de “trincheiras”, para amenizar o estrangulamento do sistema funerário no município.
Apesar de não ter o maior número de mortes por covid-19 do Brasil, são 563 mortes e 5.897 casos confirmados até a tarde desta sexta-feira (8), Manaus tem um dos sistemas funerários mais precários das quatro cidades brasileiras com mais mortes causadas pela doença, que incluem São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza.
Na capital amazonense, o sistema funerário é híbrido, ou seja, setores público e particular fazem o serviço. No total são dez cemitérios, oito públicos e dois particulares. Seis deles ficam na área urbana e quatro na zona rural. Juntas, as empresas funerárias trabalham com 62 carros funerários: 56 de 28 empresas privadas e apenas seis do SOS Funeral, programa da prefeitura para a população que não pode pagar pelo serviço privado.
Esses números representam uma média de aproximadamente um carro funerário para 35 mil de manauaras, tendo em vista que Manaus atingiu cerca de 2,1 milhões habitantes em 2019, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Quando se contabiliza a população que não pode pagar por um serviço funerário, percebe-se que o sistema público beira o sufocamento. Cerca de 31,1% da população de Manaus está abaixo da linha da pobreza, com rendimentos inferiores a US$ 5,50 dólares PPC (Paridade de Poder de Compra) por dia, o que equivale aproximadamente à renda mensal de no máximo R$ 420, conforme a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do IBGE, com dados de 2018.
Segundo um trabalhador do sistema funerário da cidade, que preferiu não se identificar, entre 60% e 70% dos carros que fazem sepultamento são irregulares. Em nota, a Prefeitura de Manaus afirmou que os “serviços fúnebres também são realizados por funerárias particulares, uma vez que a prefeitura só responde pelo SOS Funeral, e não é atribuição da Prefeitura de Manaus fiscalizar esses veículos”.
A fiscalização, informa a prefeitura, é de responsabilidade do Departamento de Vigilância Sanitária, um órgão da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus. O Brasil de Fato também entrou em contato com a pasta. Até a publicação desta reportagem, no entanto, não obteve resposta.
Manoel Viana, presidente do Sindicato das Empresas Funerárias do Estado do Amazonas (Sefeam), afirma que antes da pandemia eram 30 óbitos diários ou 900 mensais em média. No início da doença no Brasil, o sindicato fez uma projeção de 54 óbitos diários em abril, mas o cenário diferente.
“Nós fomos rapidinho de 30 para mais de 50 e depois chegamos a mais de 100, com uma velocidade de dias. Nos assustou porque realmente nós vimos entrar em colapso”, afirma Viana.
Ele conta que o cemitério Nossa Senhora Aparecida, o maior de Manaus e que recebe em média 80% dos sepultamentos, chegou a receber no máximo 32 corpos por dia, quando ocorreram rebeliões em presídios do município.
“A gente tinha cerca de 100 sepulturas abertas exatamente prevendo esse tipo de ação. Só que saiu de 30 para 100. Em um ou dois dias, acabou o estoque de sepulturas abertas no cemitério.”
Viana afirma que há mais de 30 anos a Prefeitura de Manaus não autoriza cemitérios particulares. “Você imagina: uma cidade de 2,1 milhões de habitantes sem cemitério particular. Os únicos foram autorizados há mais de 30 anos, e o espaço é pequeno, até porque as gavetas variam entre R$ 16 mil e R$ 22 mil.”
São Paulo
Na capital paulista, o cenário é outro. Apesar de ter 1.910 mortes, quase o triplo de Manaus, e 23.187 casos confirmados, a estrutura do sistema funerário paulista tem mais capacidade do que o da capital amazonense, como avalia João Batista Gomes, secretário do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), que representa a categoria dos agentes funerários. Em São Paulo, todo o serviço funerário é feito pelo Poder Público.
Devido ao aumento da demanda de sepultamentos, no entanto, segundo a Secretaria de Comunicação do município, a prefeitura preparou o Plano de Contingenciamento Funerário. No plano, está prevista a abertura do serviço para empresas privadas temporariamente, o que deve atender 20% da demanda de sepultamentos. O documento também inclui medidas como locação de câmaras refrigeradas, contratação de novos coveiros e novas sepulturas. Todas as decisões se baseiam na previsão de 400 sepultamentos diários, o que não foi registrado ainda no município. A média diária, no inverno, é de 300 enterros por dia.
Em São Paulo, são 21 cemitérios e um crematório públicos, além dos particulares. No início da pandemia, nas 12 agências funerárias, também todas públicas, eram 36 carros funerários, todos terceirizados. Com o aumento do número de sepultamentos, esse número passou para 56, com o acréscimo de 20 veículos alugados. Gomes afirma que, recentemente, foram acrescentados quatro carros da Polícia Civil de São Paulo, mas estes ainda não estão em funcionamento.
O secretário do Sindsep confirmou ao Brasil de Fato as medidas adotadas pela Prefeitura. “Eles anunciaram um plano de contingência que, se chegar a 400 enterros, eles vão começar a fazer enterros noturnos. Eles já contrataram torres de iluminação para três cemitérios: Vila Nova Cachoeirinha, São Luís e Vila Formosa”. Gomes também afirma ainda que a prefeitura já contratou oito câmaras frigoríficas para distribuir nos três cemitérios e no Crematório da Vila Alpina, além da contratação de 200 trabalhadores terceirizados.
Rio de Janeiro
O contexto de São Paulo é similar ao do Rio de Janeiro, que “tem uma situação hoje bem confortável em relação a estrutura das funerárias”, como avalia Leonardo Martins, presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Funerários do Estado do Rio de Janeiro (Seferj).
Na capital carioca, o sistema é administrado por empresas privadas há cerca de 70 anos, com exceção dos cemitérios públicos que foram licitados em 2014, sob a condição de ampliação de vagas. São 21 cemitérios, sendo 13 públicos e oito particulares, 53 empresas funerárias particulares que trabalham com licitação do Poder Público e 244 carros funerários, conforme informou a Prefeitura do Rio de Janeiro, em nota.
Em sete cemitérios, administrados pela empresa Reviver, estão sendo construídos 5 mil túmulos. Em outros seis, que trabalham sob a gestão da concessionária Riopax, 2 mil túmulos devem ser entregues até o fim de maio. Em todos os cemitérios, houve um aumento de 71% no número de sepultamentos em quatro dias de abril, segundo a Secretaria Municipal de Conservação e Meio Ambiente. Até a tarde de sexta-feira (8), o Rio de Janeiro registrou 919 por covid-19 e 9.051 casos confirmados.
Com esses números, Martins acredita que não haverá colapso como houve em Manaus. “A gente tem trabalhado em conjunto com a prefeitura para organizar os processos e a gente acredita que não haja a possibilidade colapso no momento”.
Para ele, o sistema é “dinâmico”, o que possibilita tomadas de decisões rápidas. “Claro que em algumas coisas a gente depende da prefeitura para poder mexer em algumas legislações, mas a gente está bem alinhado e isso tem deixado a gente bem confortável”, afirma Martins.
Ainda que a Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário (Abredif) oriente descontos de até 40% nos sepultamentos de mortos por covid-19, isso não tem sido verificado na prática, e um funeral simples pode chegar a R$ 3,8 mil.
Em agosto de 2018, o Laboratório de Análise de Orçamentos e de Políticas Públicas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (LOPP/MPRJ), examinou os valores de sepultamento cobrados pelas concessionárias e chegaram ao custo máximo de R$ 1.601,81. No mesmo ano, a Prefeitura do Rio de Janeiro soltou uma portaria que permite o auxílio-funeral para sepultamentos de servidores públicos e pensionistas.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Prefeitura do Rio de Janeiro para saber quais medidas está tomando em relação às famílias que não têm condições de pagar pelos serviços funerários. Eles anunciaram que desde essa quinta-feira (7) as famílias com renda de até três salários mínimos tem gratuidade nos serviços.
“A Prefeitura, por meio da Secretaria de Infraestrutura, Habitação e Conservação, também vai oferecer o sepultamento social até o valor de R$ 546 para pessoas de qualquer faixa de renda, independentemente da situação socioeconômica, ou qual tenha sido o motivo do falecimento do parente. Trata-se de medida importante para desonerar famílias de baixa renda, no momento doloroso de enterrar seus parentes”, afirmaram em nota.
Fortaleza
O Brasil de Fato entrou em contato com a Prefeitura de Fortaleza para saber o número de carros funerários que a cidade dispõe atualmente e o número de contrato com empresas privadas que prestam esse tipo de serviço no município, onde o sistema é licitado a empresas privadas. Em resposta, no entanto, a prefeitura se limitou a falar sobre o auxílio-funeral, que é concedido por meio da Política Municipal de Assistência Social aos fortalezenses.
Na nota enviada, a prefeitura atribui os serviços à responsabilidade da Funerária Unipaz. Não informa, no entanto, se há outras empresas realizando o serviço. Em contato com a funerária, a reportagem foi informada de que a empresa possui cinco motoristas e cinco carros.
Até a publicação da reportagem, a prefeitura não confirmou esse números de carros e nem informou a quantidade de cemitérios. Caso o número seja esse, cinco carros, são 530 mil habitantes para um veículo funerário. No município, são 9.669 casos confirmados e 694 mortes até a tarde desta sexta-feira (8).
Renato Lima, secretário Municipal da Gestão Regional, afirmou, ao G1, no começo de abril, que os cemitérios Antônio Bezerra, São Vicente de Paula, São José e anexo, Messejana e Parque Bom Jardim enfrentam, historicamente, superlotação de cadáveres. Dos seis, cinco estão trabalhando com capacidade máxima. No entanto, “No cemitério Parque Bom Jardim, por exemplo, realizamos cerca de 450 sepultamentos por mês. A média é de 15 por dia. O objetivo é duplicar o número de vagas diárias.”
O Brasil de Fato também entrou em contato com o Sindicato das Empresas Funerárias do Estado do Ceará. Mas, até o momento da publicação desta reportagem, a associação não se manifestou.
Edição: Camila Maciel