Desde março, o presidente da montadora japonesa Toyota no Brasil, o peruano Rafael Chang — filho de pai chinês e mãe japonesa — acompanha com lupa cada variação de venda dos modelos da marca no País. Não é pouco trabalho. Depois de um primeiro bimestre de demanda positiva, com quase 30 mil unidades vendidas em janeiro (15.116) e fevereiro (14.768), resultado praticamente idêntico ao do mesmo período do ano anterior, a pandemia e o inevitável fechamento do comércio, incluindo as concessionárias de veículos, derreteram os números e as previsões para 2020. Em maio, considerado o fundo do poço da crise, a companhia contabilizou apenas 4.645 unidades no mês, o mais trágico saldo para o período em mais de duas décadas. Um mês antes, o mercado brasileiro produzira apenas 1.847 carros, queda 99% sobre o anterior. Foi o pior resultado desde o surgimento da indústria automobilística no País, em 1957.
Ao olhar com atenção as planilhas de vendas, Chang observou uma linha em especial. Embora no vermelho, os números da picape Hilux apresentavam desempenho menos ruim do que todos os outros modelos da marca e de seus principais concorrentes. Em abril, o utilitário produzido na Argentina vendeu 1.762 unidades, o equivalente a quase tudo que as montadoras brasileiras produziram naquele mês. Não foi um fato isolado. Nos meses seguintes, a Hilux só subiu a ladeira, ajudando a tirar os resultados da Toyota do buraco. Em setembro, com 3.578 Hilux entregues, a montadora registrou uma alta de 12,2% sobre as 3.187 vendidas no mesmo mês de 2019, deixando o atoleiro da crise para trás. “A recuperação do mercado depois do auge da pandemia foi melhor do que planejamos”, disse Chang. “Neste ano, com a crise, a Toyota aprendeu a reagir com velocidade.”
A boa performance da Toyota e da Hilux pode ser explicada por uma razão principal: o agronegócio. O ritmo da produção de alimentos no campo foi das poucas atividades da economia que passaram praticamente incólumes pela pandemia. O setor foi responsável por metade das exportações brasileiras em agosto (US$ 8,9 bilhões, segundo o Ministério da Agricultura). E a Toyota, evidentemente, pegou carona na boa fase dos negócios no campo. Prova disso é que, empolgada pelos números recentes, na terça-feira (17) a montadora apresentou a versão 2021 da Hilux. A picape média se consolidou como a grande aposta da marca para atingir a meta de 180 mil unidades comercializadas no ano que vem, 40% a mais do que o previsto para 2020 (130 mil). “Com certeza, o mercado de picapes foi impulsionado pelo agronegócio. A Hilux tem a vantagem de ser versátil. Pode ser utilizada para uso pessoal e também para trabalho”, afirmou Chang. No Centro-Oeste, especialmente Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul, a picape tem o maior market share entre todas as regiões do País, com 34,3%. Como comparação, no Sul o modelo também lidera, mas com fatia de 23%.
A empolgação do executivo vai na contramão do que ocorre no segmento de comerciais leves (picapes e furgões). Entre janeiro e outubro, houve queda de 21% nas vendas na comparação com o mesmo período do ano passado. No caso da Toyota, saíram da planta de Zárate, nos arredores de Buenos Aires, 71,4 mil unidades da Hilux. Desse total, 57 mil foram exportadas — 26 mil vendidas no Brasil. Parece pouco, mas não é em um setor acostumado a quedas consecutivas de vendas desde o início do ano. Em 2020, até outubro, as vendas totais da Toyota despencaram 43%, provando que o segmento de picapes médias, a queridinha dos produtores rurais, foi no sentindo contrário. Sem ela, montadora teria um ano bem mais difícil.
CONCORRÊNCIA Graças à força da Hilux, a retração foi menor — e o futuro é promissor. Para 2021, a estimativa é que sejam comercializadas 42,5 mil unidades. Líder em vendas na categoria nos últimos três anos, a Hilux (com preços sugeridos entre R$ 145,4 mil e R$ 242 mil) tem como principais concorrentes a Chevrolet S-10, a Ford Ranger e a Volkswagen Amarok. A Nissan Frontier e a Mitsubishi L200 ainda disputam o mesmo público.
Para não depender apenas de um modelo, Chang acredita na recuperação do mercado de automóveis em geral. A estimativa da Toyota é que, em 2021, sejam comercializadas 2,5 milhões de unidades, um crescimento de 25% em relação às projeções para 2020. “Este número deve ficar próximo dos 2 milhões”, afirmou o executivo. “Acho que, no geral, a recuperação do mercado está sendo bem melhor do que se imaginava.” Apesar do otimismo, Chang tem conduzido a Toyota dentro de uma estratégia cautelosa.
As fábricas da Toyota em Sorocaba e Indaiatuba, ambas no interior de São Paulo, foram as últimas do País a retomar as atividades. Ficaram paradas entre 24 de março e 22 de junho. Segundo o presidente, a companhia precisa estar pronta caso o Brasil seja afetado por uma segunda onda da Covid-19, como já acontece em alguns países da Europa e nos Estados Unidos. Chang admite que, caso a situação seja confirmada, o planejamento para 2021 será revisto. “Vamos torcer para não acontecer, mas se ocorrer, iremos reagir como na primeira onda”, afirmou. “Colocaremos como prioridade a higiene e a segurança para cuidar de nossos trabalhadores, familiares e comunidade em geral. Depois, teremos de avaliar o que faremos com a produção em nossas plantas, na operação com os fornecedores e com os nossos concessionários.”
O presidente da Toyota, no entanto, garante que, apesar dos solavancos e incertezas geradas pela crise, os investimentos da companhia seguirão seu curso natural. Neste ano, a empresa lançou os programas Kinto Share e Kinto One, voltados, respectivamente, ao compartilhamento de veículos e ao gerenciamento de frotas. Além disso, deu sequência ao desenvolvimento de um modelo, a ser lançado no ano que vem, na planta de Sorocaba, onde já são fabricados o Etios e o Yaris. O projeto é guardado a sete-chaves, exceção ao investimento de R$ 1 bilhão anunciado em 2019.
No mercado, a aposta é que será o segundo modelo híbrido produzido pela marca no Brasil – no ano passado, o Corolla foi o primeiro da categoria a combinar motor flex com propulsor elétrico. Assim, além da bateria que se autorrecarrega com o veículo em movimento, o modelo pode ser abastecido com gasolina ou etanol. A tecnologia resulta em uma significativa economia de combustível, já que o consumo urbano pode chegar a 16,3 quilômetros por litro. “Nossa previsão inicial era de 15% de vendas. Agora, o resultado é 25%. O mercado está conhecendo mais e aceitando essa motorização.” Até 2030, segundo Chang, cada modelo da marca terá uma versão híbrida ou totalmente elétrica. E, até 2050, a meta é ser carbono zero. “É um caminho sem volta”, afirmou. Ao mesmo tempo, relatou que a falta de infraestrutura no Brasil para o recarregamento de baterias, por exemplo, dificulta a fabricação de veículos 100% elétricos.
CENÁRIO Nem o possível fim, em dezembro, do pagamento do auxílio emergencial pelo governo federal, nem a projeção de alta da inflação e de dificuldade de acesso a crédito por parte da população minam o otimismo do presidente. “Estamos assistindo neste trimestre a uma recuperação da economia brasileira, que visivelmente está saindo da recessão”, disse Chang. Ao analisar os efeitos da pandemia nos negócios, ele acredita ser necessário dividir a demanda por categorias de veículos, principalmente em relação aos comerciais, que tiveram as vendas alavancadas pelo agronegócio. “É uma oportunidade para continuar crescendo ou pelo menos retomar o nosso nível de vendas”, disse. “E pode ser que aconteça o mesmo em relação à demanda individual. Vimos uma procura maior (por automóveis) de pessoas que não quiseram utilizar o transporte público. Outras preferiram alugar carros. Acho que vamos ter muitas oportunidades, dependendo do setor da economia e do tipo de uso do veículo.”
Uma das oportunidades citadas pelo presidente é o Kinto Share. Diferentemente dos planos de assinatura adotados por algumas montadoras (Audi e Volkswagen, por exemplo), o projeto permite alugar um modelo por curtos períodos, além de outras opções. Chang, porém, afirmou não acreditar que programas do tipo possam desencorajar os consumidores a comprar um veículo. “Nossa função é providenciar esses serviços, seja de venda, seja de compra ou de aluguel. E uma tendência mundial.”
DIVERSIFICAÇÃO Com a queda na produção e na demanda, principalmente no segundo trimestre, a empresa realizou “alguns ajustes” no quadro de funcionários que culminaram na redução de 10% da mão de obra. Dos 6 mil colaboradores do período pré-pandemia, 600 aderiram a dois planos de demissão voluntária, um na fábrica em Indaiatuba e o outro nos setores administrativo e gerencial.
Especialista no setor, Paulo Cardamone vê como “certeira” a decisão da Toyota de apostar no segmento de picapes em 2021. O CEO da Bright Consulting lembra que os modelos da categoria e os SUV foram os que apresentaram menores quedas nas vendas entre outubro deste ano e de 2019 – 21% e 18%, respectivamente, enquanto que o mercado no geral apresentou retração de 31%. “O agronegócio está bombando. Em SUV, houve muitos lançamentos. Por isso a procura foi maior pelos dois segmentos”, afirmou. Apesar de a Toyota ter perdido um ponto percentual no mercado até outubro (8,1% para 7,1%), Cardamone disse que a montadora deve fechar 2020 com “7,3% ou 7,4%”, em plena recuperação.
Com a recuperação das vendas de todos os seus modelos, e puxada pela força Hilux no interior do País, a Toyota se lembrará de 2020 como o ano que, para sair da lama da crise, precisou colocar o pé no barro. Literalmente.
ENTREVISTA: “Estamos mais flexíveis e conectados”
Rafael Chang, presidente da Toyota no Brasil
O que esperar da economia brasileira no ano que vem?
Estamos olhando para uma recuperação da economia brasileira neste trimestre, que traz indicativos para uma saída de uma recessão. É nosso compromisso analisar bem o mercado e buscar outras oportunidades. O ano de 2020 foi desafiador e de muito aprendizado para toda a indústria. Interrompemos a produção e as vendas de veículos por quase três meses, o que afetou fortemente toda a cadeia produtiva. Foi um período crítico para buscarmos soluções para aumentar a produtividade. A situação ainda é volátil e difícil de traçar qualquer prognóstico. Por isso temos planos A, B, C e até X.
Qual a sua avaliação sobre o trabalho do governo federal na economia?
Toda situação complexa exige soluções conjuntas. Não posso falar pelo governo federal, pois muitas decisões são regionalizadas e decididas no âmbito estadual, levando em conta a realidade de cada localidade. É importante que os agentes da sociedade, todas as esferas do governo, setor privado, sociedade civil, trabalhem em conjunto para enfrentar uma situação tão complexa como está em que vivemos. Isso envolve as reformas administrativas e tributárias, necessárias para a volta do crescimento da economia.
Muitas empresas adotaram o trabalho remoto durante a pandemia e pretendem torná-lo definitivo a partir de 2021. Com isso, o deslocamento de pessoas ao trabalho continuará menor. Essa situação pode ter forte impacto nas vendas de carros?
Tínhamos essa preocupação com o aumento expressivo do trabalho remoto, como o mercado de autos seria impactado. Na verdade, não houve impacto nesse primeiro momento. Temos visto muita gente buscando ter carros para poder se deslocar para a praia ou campo e trabalhar desses lugares quando pode. Quando você trabalha a cinco quilômetros de casa, tudo certo pegar um carro por aplicativo. Mas para ter flexibilidade e fazer longas distâncias, precisa de carro. Isso ajudou.
Temos uma nova geração que não tem como prioridade a aquisição de um veículo. Como a Toyota pensa em atrair esse novo tipo de consumidor?
O compartilhamento tem atraído os mais diferentes públicos, desde aquele cliente com alguma necessidade pontual, como se deslocar para um compromisso ou que necessite fazer uma viagem com um veículo mais robusto, até aqueles que têm interesse em adquirir um veículo da marca e querem conhecer mais o carro. Com estes serviços, como o Kinto Share, percebemos que a nova geração se identifica mais com este tipo de solução tecnológica e inovadora, pois está mais acostumada com o conceito “pay per use”. Por isso, focaremos em prover soluções de mobilidade cada vez mais sustentáveis e eficientes para todos os tipos de consumidores. Estamos mais flexíveis e conectados com a necessidade dos nossos clientes.
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