Preparar um voo é uma tarefa complexa para os pilotos de avião. Eles precisam fazer diversos cálculos de combustível, estimando a autonomia da aeronave conforme a presença de aeroportos alternativos ao longo da rota. Também levam em conta o clima, o peso do avião e até a velocidade para encontrar o equilíbrio entre tempo e eficiência. E foi exatamente por isso que me senti quase um comandante enquanto me preparava para mais uma viagem de São Paulo (SP) até Blumenau (SC).

Já fiz esse trajeto dezenas de vezes, mas agora havia uma diferença importante: o aparelho, ou melhor, carro que eu iria usar era um Audi e-tron Sportback. O desafio era testar a infraestrutura de recarga fora do eixo Curitiba-São Paulo-Rio de Janeiro e ainda avaliar a paciência da família que iria me acompanhar na jornada.

O primeiro passo foi a escolha do carro, que deveria ter a maior autonomia possível por conta de motivos que mencionarei adiante. Isso basicamente restringiu as opções entre Jaguar I-Pace e e-tron, e optamos pelo segundo por conta da disponibilidade da fabricante. Até a carroceria teve influência: o perfil inclinado da traseira do Sportback lhe dá 10 km a mais de alcance, segundo a Audi.

De quebra, o SUV alemão tem um computador de bordo atrelado ao GPS, que considera a topografia para calcular a autonomia real do carro. Se em uma descida de serra a autonomia cresce exponencialmente (por conta da frenagem regenerativa), na subida a situação se inverte.

Uso de ar-condicionado, velocidade e até os modos de condução são considerados no cálculo, que se ajusta em tempo real avisando o quanto você ainda pode rodar. Acelerações intensas também gastam mais energia, então o modo de condução mais econômico foi compulsório e coloquei até uma tag para não precisar parar nos pedágios, poupando energia.

Plugshare reúne os principais carregadores públicos – somente os laranjas são rápidos — Foto: Reprodução

Nunca achei que fosse planejar uma viagem onde cada quilômetro contasse. A rota inicial foi calculada no site Plugshare, uma espécie de Google Maps que mostra dezenas de pontos de recarga cadastrados pelo usuário e que permite programar a rota conforme a autonomia de seu elétrico.

O primeiro carregador, ainda em SP, funcionou e estava livre – mais distante do posto, evita que carros a combustão bloqueiem a vaga — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Começaram os contratempos: até Curitiba não haveria problema, pois o eletrocorredor da EDP feito em parceria com o Grupo Volkswagen inclui dois pontos de recarga ultrarrápida na região de Registro (SP), perto do meio da rota entre as duas capitais. Porém são mais de 410 km entre o posto Graal, onde ficava o aparelho de recarga, até o meu destino. Como em testes preliminares o e-tron nunca apontou mais de 350 km de autonomia real, optei por incluir mais uma parada de recarga.

Mais um problema a ser enfrentado: carregadores de carros elétricos não são todos iguais. Via de regra eles se dividem em duas categorias, lentos e rápidos. Os primeiros vão desde o aparelho de emergência que vem junto do e-tron e pode ser ligado em uma tomada 110V/220V até aquelas pequenas caixas (wallbox) que têm se popularizado em shoppings e supermercados nobres.

Esses aparelhos têm até 22 kW de potência (quanto maior o número, mais rápido o carregador é). Mas enviam ao veículo a eletricidade como corrente alternada (AC), igual à usada nas residências e diferente da corrente direta (DC) usada pela bateria. Isso exige que o fluxo de energia passe por um aparelho chamado inversor, que faz a mudança de AC para DC e vice-versa (obs: é daí que vem o nome da ótima banda de rock homônima).

Limitado pelo inversor do e-tron, o carregador AC de 22 kW entrega só metade de sua potência — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Só que esse troca-troca no e-tron limita a corrente de eletricidade a 11 kW, mesmo que o carregador AC tenha mais capacidade. Daí a solução ideal passa a ser os carregadores rápidos, que também têm velocidades distintas.

Eles enviam eletricidade por corrente contínua (DC) diretamente à bateria — sem o inversor no meio do caminho, eles são limitados apenas pela capacidade do acumulador em receber tanta energia de uma só vez. No caso do e-tron são até 150 kW, o que é excelente! Isso se houvesse algum carregador rápido na rota entre Registro e Blumenau…

Melhor passar frio: ligar o aquecimento é pior que usar o ar-condicionado em um elétrico — Foto: Autoesporte

Enfrentei um impasse: ou fazia um desvio de 60 km e uma hora para o carregador rápido de 50 kW da Copel na periferia de Curitiba ou parava em um ponto de recarga lento em Campina Grande do Sul (PR). O receio de tornar a viagem mais longa fez meus passageiros optarem pela segunda opção, já que aproveitaríamos a parada para almoçar (algo bem mais difícil na Copel, localizada em um ponto afastado de grandes comércios).

Sempre que o e-tron é conectado a um carregador ele calcula o tempo para a recarga máxima da bateria, e a informação dada naquele momento não era animadora: quase seis horas para a reposição completa. Felizmente não precisava de tanto, apenas o suficiente para ir até Blumenau.

Uma hora e meia depois estava de barriga cheia, mas o e-tron não poderia dizer o mesmo: ele acusava 160 km de alcance, longe dos quase 230 km até Blumenau. A solução para não ficarmos mais tempo parado veio pelo Plugshare: há um carregador rápido no caminho, perto de Araquari (SC). Mas ele estava a 170 km.

Quem já deixou o carro chegar na reserva sabe o desespero que é rodar sem ter certeza de que você vai conseguir chegar em um posto. Agora imagine isso com um carro que não pode ser abastecido em qualquer lugar e com outras duas pessoas já frustradas em aceitar seu desafio. O jeito foi adotar as táticas de hypermiling, nome dado a diferentes formas de reduzir o consumo de seu carro.

Nem tão práticos, os retrovisores eletrônicos ajudam a reduzir o Cx do e-tron (e aumentar a autonomia) — Foto: Autoesporte

Ela envolve aumentar a pressão dos pneus e até andar atrás de caminhões, mas optei por métodos menos perigosos e basicamente evitei passar dos 100 km/h, além de ter proibido o uso do ar-condicionado. Na verdade até a ventilação estava vetada, pois era um dia frio, com temperatura na faixa dos 16ºC. Cada grau que eu ajustava para cima na ventilação, mesmo com o ar-condicionado desligado, a autonomia caía até 2 km.

White People Problem: o carregador rápido de Araquari (SC) já estava sendo usado por outro e-tron — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Esse é um defeito inerente dos elétricos. Como não há um motor a combustão de onde o calor possa ser extraído, ele precisa aquecer o ar usando energia elétrica, como aqueles aparelhos domésticos. Na prática, usar ar quente em um elétrico faz ele perder mais autonomia do que acionar o ar-condicionado.

Ideia 10, execução 1: o carregador rápido fica espremido entre duas vagas, sendo uma delas exclusiva para PCD — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

As reclamações dos passageiros foram rapidamente compensadas e, poucos minutos depois, o e-tron avisou que rodaria até 170 km com a energia restante. Passando por Joinville (SC), uma pequena descida de serra ampliou o alcance para 180 km, dando folga para o uso de ar-condicionado e velocidades maiores.

Nessa altura aposto que você está quase tão cansado quanto eu, mas pelo menos agora a recarga seria do tipo rápida, em um aparelho de 50 kW. Pena que quando eu cheguei no local já havia outro Audi e-tron usando o conector DC. Esse é o problema mais grave da maioria dos pontos de recarga rápida no Brasil, já que quase todos têm apenas um cabo de alta velocidade. E não ajudou em nada o posicionamento do aparelho, espremido entre duas vagas — e uma delas era destinada a deficientes físicos. Ao menos a espera durou só 15 minutos, pois o condutor do outro carro estava terminando sua recarga.

Ligado a uma tomada 220V, o carro dava a péssima notícia: quase dois dias pra carregar — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

O fim do trajeto de quase 12 horas (pouco menos de três horas a mais do que o tempo normal) se deu com 30 km restantes de autonomia e um retrato claro sobre por que não adianta carregar carro elétrico sem os wallbox. Ao conectá-lo em uma tomada de 220V, o carro avisou que exigiria incríveis 47 horas para recarregar completamente.

Eu me programei para ficar mais de dois dias na cidade catarinense, mas optei por deixar o e-tron carregando em um ponto de carga lenta curiosamente colocado dentro de um posto de combustível. Precisaria só de quatro horas, então estacionei o carro no local no início da tarde após ter certeza de que ele estava sendo carregado, uma constante a cada parada desta jornada.

O carregador AC dentro do posto de combustível estava livre, mas parou de funcionar e travou o cabo no e-tron — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Ao fim do dia, outra notícia ruim: o aparelho havia travado após ter carregado menos de 5% da bateria. E a proteção eletrônica do e-tron (comum a outros elétricos) manteve o cabo bloqueado, uma medida de segurança feita para evitar a desconexão repentina durante o processo de recarga, mesmo que não houvesse energia passando por lá no momento.

Na saída de madrugada, a notícia ruim dada pelo GPS inteligente: a autonomia (mancha azul) não era suficiente até a Copel — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Como eu já havia lido o manual de instruções do carro — parte da preparação para a viagem —, consegui liberar o conector usando dois cabos de emergência embutidos no e-tron. Agora era confiar que a recarga de 220V seria suficiente para me dar alcance até a Copel, pois já tinha convencido os envolvidos de que era melhor usarmos apenas aparelhos rápidos.

Sem energia, o carregador rápido em Curitiba também foi usado por um I-Pace — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Na madrugada do dia seguinte o GPS do carro me dava a notícia ruim: a mancha azul, que mostra o alcance real do e-tron, estava distante da Copel. O jeito seria parar novamente em Araquari. Felizmente a etapa da volta teve menos imprevistos.

Sem suporte 24h, o carregador paralisado assustou – mas voltou a funcionar alguns minutos depois — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Mas eles ainda aconteceram. Na Copel o aparelho de 50 kW indicou pouca energia na rede e adiaria a recarga rápida. Optei por alguns minutos pelo conector lento, até que um Jaguar I-Pace chegou e sugeriu tentar novamente o cabo rápido, que funcionou corretamente na segunda tentativa.

O caminho até Registro incluiu os inevitáveis engarrafamentos provocados por acidentes e pelas obras constantes na Rodovia Régis Bittencourt, mas pelo menos o e-tron quase não gasta energia quando está parado, motivo para uma discreta vingança dos carros a combustão.

Trânsito parado por conta de acidente, mas sem crise para o e-tron: o consumo de bateria é quase nulo nessa situação — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

A última parada teve carregador com vaga livre e um pequeno susto. Os aparelhos da EDP exigem liberação da recarga por meio de um cartão pessoal ou via aplicativo de celular, que depende de conexão à internet. Com sinal ruim no posto e distante de um Wi-Fi aberto, precisei esperar por um curto (mas tenso) período até o início da recarga, que estava limitada a 66 kW. No fim da maratona senti um alívio que havia muito não sentia ao chegar em São Paulo.

Longo caminho pela frente

Depois de mais de 1.200 km dá para concluir que o Brasil está muito distante de uma infraestrutura satisfatória de recarga. As empresas estão cientes disso: a EDP afirmou que sabe dos problemas de sinal nos postos e afirmou que funcionários no local ficam com um cartão que pode liberar a recarga. Também destacaram que a limitação de 66 kW no recarregador do Graal Petropen é temporária por conta de ajustes na infraestrutura local. A Celesc/Fundação Cerpi, responsável pelo eletroposto em Blumenau, e a Copel não explicaram sobre os problemas nos carregadores.

Dá para monitorar a recarga pelo smartphone nos carregadores da ABB/EDP, mas o do Graal Petropen estava com potência limitada — Foto: Rodrigo Ribeiro/Autoesporte

Mas não é justo colocar a pressão somente nas empresas privadas. Por mais que carros elétricos ainda sejam uma realidade apenas para uma minoria (bem) endinheirada da população, é preciso estímulo governamental para fomentar uma rede mais ampla de apoio a esses carros.

Os envolvidos também precisam entender a importância de pontos rápidos ao longo das rotas de maior movimento, e não somente no destino, além de mais conectores rápidos e até vagas amplas e protegidas do uso inadequado por outros modelos.

Na situação atual até dá para viajar com um elétrico, mas será preciso paciência dos passageiros e cálculos de piloto de avião, pois a infraestrutura brasileira ainda está muito longe de ser um céu de brigadeiro.

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